A culpa

«(...) nós trazemos na alma a bomba e o problema está em alguém fazer lume para a rebentar. (...) Agora pergunto - se escolheram a maldição e alguém faz lume, quem é o culpado dela rebentar? Como é que um tipo é culpado de trazer uma bomba na alma se foi outro que a fez explodir? E como é que é culpado o tipo que fez o lume, se a bomba não era dele? Qual é a sequência da causa/efeito? Mónica, minha querida, eu posso perfeitamente dizer que a causa, que é o lume, está depois do efeito, que é a bomba. Mas já explico melhor, se valer a pena e não expliquei bem. A minha ideia agora é que o limite de tudo é o incognoscível. Mas temos de nos ir governado, como pudermos para não darmos em doidos e haver ordem na vida. A verdade de tudo há-de esclarecer-se no sem-fim. Mas temos de ser razoáveis para ir vivendo. Admitamos para já que o culpado é o que faz lume». [Vergílio Ferreira, «Em nome da terra», Quetzal, pág.187 e 188]

6 comentários:

  1. O "complicómetro" do Existencialismo (do qual V.Ferreira é um represente) na sedução de raciocínios :)
    «Admitamos para já que o culpado é o que faz lume», pois claro, vindo de uma escola que defende que existir é ser um ser culpável, que o homem é totalmente culpável e responsável, tanto dos seus actos voluntários como das suas tendências obscuras (instintos, fantasias, sonhos).
    E este é um extracto interessantíssimo.
    Um abraço

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  2. Tem toda a razão, e no caso do Vergílio Ferreira a tendência do Existêncialismo para o "complicómetro" é agravada pela formação católica, designadamente em matéria de culpa. A culpa, aliás, é um sentimento terrível, particularmente destrutivo em certas pessoas. Mas apesar de tudo há sabedoria quando se conclui «Mas temos de nos ir governado, como pudermos para não darmos em doidos e haver ordem na vida. A verdade de tudo há-de esclarecer-se no sem-fim ». Uma verdade provisória, uma verdade humana. Confesso a minha paixão por este livro. Gosto tanto dele que hesito na escolha do próximo deste autor. Comprei o Diário Inédito [tenho especial predilecção por diários e autobiografias], já folheei os Contos, mas hesito. Não me dá uma sugestão?

    Já aqui tenho o «Mar me Quer». Já o pus no topo da minha pilha ... :-)

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  3. Certíssimo: se presença de Deus que é uma obsessão para os existencialistas (que lhe negam a sua centralidade pois Ele não cabe nos seus esquemas, não o conseguindo, todavia evitar), em V.Ferreira essa obsessão (devido à sua formação)adquire propriedades inauditas. Neste sentido, será importante ler o «Aparição», que nos ilumina toda a escrita do autor.

    Ainda sobre a "sabedoria", que refere, lembro o que escreveu o próprio V.F. numa Colóquio Letras:
    «Só para ter existido valeu a pena existir. A maior recompensa da vida é ela própria.Creio que em tudo o que disse não disse afinal outra coisa.Creio que tudo o que me fascinou nada me fascinou mais que a vida, o seu mistério inesgotável, a sua inesgotável maravilha.Dou o balanço a tudo o que me aconteceu, e a vertigem de ter vivido absorve e aniquila tudo o que aí falhou e mentiu. Foi bom ter nascido. Foi bom não ter acabado ainda de nascer..". Magnífico, não? :)

    Sobre o "Mar me Quer": lê-se de um fôlego em meia horita, para se recomeçar devagar, envolvido pelas, também, superiores ilustraçãos.

    Outro abraço
    TSC

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  4. "ilustraçãos"?! Claro que é ilustrações. Desculpe...

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  5. Absolutamente magnífico! Está explicado porque gostei tanto do livro. Muitíssimo obrigado pela dica. Irei, então, pelo «Aparição».

    Um abraço muito agradecido! :-)

    PS. não se preocupe com as gralhas, eu sou igual :-)

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  6. Reli o que escrevi e talvez valha a pena precisar um pouco o meu comentário entusiasmado a propósito do excerto da Colóquio Letras, que acima transcreveu. O que me fascina neste particular livro é o facto de me parecer aí ver reflectida a sabedoria acumulada durante toda a vida pelo próprio autor [tanto quanto me parece, o livro será de 1990, o VF morreu em 1996, com 80 anos], sabedoria própria daqueles que, nas culturas africanas [ou ditas, mais «primitivas»], são designados por «mais Velho», ou «o» mais Velho, hoje em dia muito desconsiderados nas sociedades europeias ditas «modernas». Julgo também que não é por acaso que o personagem principal é (foi) juiz. É esta sabedoria própria do «mais Velho» que dá os grandes juízes, e depois ainda se admiram por aí da tão falada situação da Justiça... Enfim, esta conversa tem pano para muitas mangas, não vou abusar da sua paciência, e tenho mesmo [mesmo mesmo!] de atacar o trabalho.
    Um beijo

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