«A dez mil quilómetros de ti»

«Chegara ao escritório, mal tivera tempo de pousar a mala ou de despir ao menos o casaco, quando a viu, no tampo envidraçado da mesa, entre notificações e umas quantas inutilidades, uma carta, com a tarja de correio aéreo, as marcas da distância enrugadas no envelope.
Sentou-se, e na ânsia controlada que era o seu modo de sobreviver ao espanto, leu-a como se fosse alheia:


"Ouve-me. Ontem parece que acabou tudo o que me trouxe aqui. Vi-me como se a um espelho. Um sentimento de isolamento, o desejo de não estar, a incapacidade de fruir com os outros a autenticidade da vivência que eles gozam e lhes basta, entre a infâmia da intriga permanente e a indiferença face à miséria que nos circunda.
Hoje, estonteado pela luz, tentei sair à rua. Qual toupeira cega, não cheguei além do primeiro quarteirão empoeirado. O sol, o inclemente sol, perseguindo-me a cabeça, o zumbido de insectos alados anunciando um apetite voraz pelo meu sangue, hordas de crianças, pedintes, míseras, pertinazes na arte de perseguir por uma moeda, batedores do alheio, o estrangeiro como uma mina e o eldorado e, em tudo, um halo de cinzas, de destruição, de morte ainda fresca. Cambaleando de dor, regressei.
Dizem-me que é uma nação a fazer-se. Dizem-me que no ar condicionado se redigem prodígios de arquitectura legal. Na rua, ostensivas e arrogantes, patrulhas motorizadas, carros de combate e camiões, provocadora, uma parabólica esventrando os céus, sereias funcionárias estiradas nas praias, o luxuoso exibicionismo na areia suja, cochichos de fervilhante conspiração, de doentia maledicência entre copos, corpos e comezainas.
Não sei por quanto tempo ficarei, nem sei já se vale a pena aquilo que faço.
Sei que há um «eu» que me trouxe aqui, sem ao menos o conforto de uma ideologia que sinta minha, de uma causa a que chame própria, de uma pátria que me reclame. Patriota de pátrias adoptadas, pária por vocação, estrangeiro exilado de si, que nenhuma família em rigor reclama como seu.
Mas conheço também aquele que nestas linhas se confunde e se lamenta e tenta mostrar que perdido está, trancado num quarto de hotel, desejando que não toque o telefone, que nada suceda, que ninguém o convide.
O momento agónico da hora do almoço aproxima-se e com ele a descida necessária à casa de jantar. Fosse eu, nesse local de requinte, qual deck elegante de um navio, o solitário passageiro taciturno, aquele que a ninguém fala e de quem ninguém se aproxima, absorto na ausência como se num livro se concentrasse, indiferente e alheio. Pudesse, ao menos, essa categoria espectacular e trágica do homem só despertar, por um momento que fosse, o primeiro impulso do amor alheio que é a comiseração e a simpatia. Mas, trancado aqui e do mais isolado, resta-me o mundo fictício da minha literatura real, suas personagens e a promiscuidade dos seus actores.
Dei comigo esta manhã, como se no cansaço do longínquo tivesse encontrado a incapacidade de regressar, no cais do meu próprio desembarque eu fosse aquele que acena aquém da viagem, um interminável adeus a ter ficado.
Esgota-se-me a capacidade de sofrer, o absurdo da condição de homem dividido, estendendo a mão como aquele que, aqui por uma côdea de afecto, ali por um halo de ternura, numa esquina incógnita a aguardar e exaurir à saciedade, esgotados os sentidos, conseguisse com isso sobreviver.
Longe da pátria onde não nasci, do lar que nunca tive, resta-me o fio desta correspondência e a esperança morna que a recebam.
Talvez tudo tenha envelhecido a ponto de não haver mais do que, amanhã, o alçar a âncora lodosa de um cargueiro, o chiar retesado dos cabrestos e seu cordame, a maré a subir e com ela a hora de zarpar, orçando a bombordo primeiro em marcha a ré, e força a vante rumo ao norte mítico, ao equador da tranquilidade, à náusea de semanas apenas com o mar por companhia.
Recolheria pela tarde ao camarote. Talvez eu te tivesse então e a nudez reconfortante do teu corpo, a meu lado, na ânsia de dormir, dormir só e tão-somente, que há dias em que um homem desespera de si e se cansa do resto.
Ouve-me. Parece-me que tudo acabou. Ontem vi-me, como se num álbum de fotografias recordasse o longíquo parente, virando a folha, esquecido o nome, a memória ténue. Ontem vi-me ali, irreconhecível e de mim próprio incompreendido.
Em breve fecha a mala postal. Quando me leres sabe-se lá como estarei. Os deuses apiedam-se muitas vezes abreviando o mal real com a embriaguez do sonho. Bebamos pois à vida, sejamos do mais esquecidos e do resto indiferentes, no confinado espaço, a cadência salgada do mar na escotilha, batendo o ritmo do coração, os solavancos dos nossos corpos em viagem.
Espera por mim. Peço-te que leias os Laços de Família. É o que nos falta. Seremos uma, se eu voltar."


Muito tempo depois, relida a carta teria a certeza do que nela se dizia: o amor doloroso, feito da ausência ansiosa, pareceu-lhe, enfim, a felicidade possível, o máximo de todos os mundos. Momentos depois estaria na rua, todo o mundo de obrigações quotidianas à sua espera, daquelas que não fazem história nem mudam o mundo. Um desejo de que aquele infinito momento se pudesse prolongar tomou conta de si, o mar à vista, o céu a confundir-se com ele
[José António Barreiros, «Contos do desaforo», Ed. Presença, p.54-57]

2 comentários:

  1. O que são "dez mil quilómetros" para o espírito que não conhece a distância? Este texto estupendo do JAB vem, assim, conversar com o meu post de tom azul. Pois. E o espírito espera, porque só assim pode ser, porque ele também não conhece as limitação do tempo.
    Muito obrigada, C.

    Um abraço
    Teresa

    ResponderEliminar
  2. Celebração do espírito, exactamente, em sintonia perfeita! :-)

    «Espera por mim. Peço-te que leias os "Laços de Família". É o que nos falta. Seremos uma, se eu voltar.» Gosto muito dos contos do JAB, mas este talvez seja o meu preferido. Acho-o, a todos os títulos, fora do comum, extraordinário.

    Obrigado por existir, Teresa.
    Um abraço

    ResponderEliminar