Talvez me chame Jonas

Não sou ninguém:
um homem com um grito de estopa na garganta
e uma gota de asfalto na retina.
Não sou ninguém. Deixai-me dormir!
Mas às vezes ouço um vento de tormenta que me grita:
«Levanta-te, vai a Ninive, cidade grande, e brada contra ela.»
Não faço caso, fujo pelo mar e deito-me a dormir no canto mais escuro da nave,


até que o Vento teimoso que me segue
volte a gritar-me outra vez:
«Dorminhoco, que fazes aí? Levanta-te.»
-Não sou ninguém:
um cego que não sabe cantar. Deixai-me dormir!
E alguém, esse Vento que busca um funil de trasfega, diz junto  mim, dando-me com o pé:
«Aqui está; farei um trombeta com este cone de metal velho e vazio; 
por ele meterei minha palavra e encherei de vinho novo a velha cuba do mundo. Levanta-te!»


- Não sou ninguém. Deixai-me dormir!
Mas um dia lançaram-me ao abismo,
as águas amargas cercaram-me até à alma, 
a ulva enredou-se na minha cabeça,
cheguei até às raízes dos montes,
a terra lançou sobre mim suas fechaduras para sempre...
(Para sempre?)
Quero dizer que estive no inferno...
De lá trago a minha palavra.
e não canto a destruição:
apoio a minha lira na crista mais alta deste símbolo...
Sou Jonas.

Léon Felipe, «Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea», selecção e tradução de José Bento, Assírio e Alvim, p.111-112
[Nasceu em Tábara (Zamora) em 1884. Fez estudos secundários em Santander e de Farmácia em Vallodolid e Madrid. Foi farmacêutico e actor profissional. Em 1922 deixou a Espanha, passando a viver nos Estados Unidos, México e Canadá como professor de língua e literatura espanholas. Durante a Guerra Civil esteve em Espanha, colaborando na revista 'Hora de España'. Depois fixou-se no México, onde faleceu em 1968. Traduziu Shakespeare e Whitman - ob.cit.,  p. 107 ]

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