Mata-me pensar que em mim não pensas

Fosse-me a carne opaca pensamento,
a vil distância não me deteria
e de remotos longes num momento
até onde te encontras eu viria.
Nem importava que tivesse os pés
no ponto que é de ti mais afastado:
o pensamento vai de lés a lés
mal pensa no lugar a que é chamado.
Mas mata-me pensar que em mim não pensas
para saltar as milhas quando vás;
feito de terra e de água em partes densas,
espero em ânsias o que o tempo traz.
   Nem lentos elementos trazem mais
   do que choros, da nossa dor sinais.

[Vasco Graça Moura, «Os Sonetos de Shakespeare - Versão integral», Bertrand, p.99]

8 comentários:

  1. Gostei bastante. Outro dia li, que no seu tempo de vida, Shakespear só ficou famoso pela comédia, mas agora que o podemos analisar em pleno, foi um homem profundo, genial!...
    Um abraço,
    Manuela

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  2. À partida gosto desta tradução de VGM.
    Mesmo assim vou comparar com a da Mª Lourdes Saraiva, dos anos 60, que porventura será mais académica. Só o farei no sábado.
    Estou de acordo consigo na dúvida que expressou no "Prosimetron", sobre aquela tradução de João Barrento. A leitura é, no mínimo, confusa.

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  3. Duplamente grato, APS, por me orientar relativamente a este livro, e por me fazer sentir menos herético relativamente à tradução do João Barrento.
    Uma pequena nota irónica, ainda sobre este livro do VGM: depois de copiar o poema, passei à identificação dos autores e comecei por referir primeiro o autor do poema original (Shakespeare) mas depois atentei bem na capa do livro e decidi que, por fidelidade à fonte, devia reproduzir o que dela consta, ipsis verbis, ou seja, devia começar por identificar o tradutor. E assim ficou. Julgo que é a primeira vez que tal me acontece...

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  4. Obrigado, Manuela. Como já deve ter reparado tenho uma paixão assolapada pela obra do Shakespeare. Ainda bem que gostou. Um abraço.

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  5. Antes de mais, rectifico o meu erro, por ter citado de memória. A trdutora é, na verdade,Maria do Céu Saraiva Jorge(ed. 1962). A tradução é realmente mais literal e académica. Dou os exemplos da 1ªquadra e dois últimos versos:
    "Se este meu barro fosse pensamento,
    Distâncias não tolhiam meu andar;
    O espaço não seria impedimento
    P'ra de longes confins te procurar.
    (...........)
    Não recebendo, deste barro vil,
    Senão, da mútua dor, lágrimas mil."

    Só falta agora cotejar com o soneto original de W. Shakespeare. Vou ver se o faço no fim de semana. Se o fizer, direi alguma coisa.

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  6. Depois de ler os exemplos que transcreveu, retiro a nota irónica, a propósito da ordem dos nomes na capa. A tradução do VGM parece-me muito mais próxima da beleza do poema original.
    A sua observação fez-me ver ainda que devia ter colocado aqui o soneto original, mas infelizmente deixei o livro em casa e vou estar fora este fim de semana... A edição é bilingue.
    Muito obrigado, APS.

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  7. Já tive ocasião de cotejar o original e as duas traduções.A de VGM é de longe a melhor, sem a menor dúvida. E penso que consegue o 3
    em 1. Ou seja, respeita o sentido e, transpõe muito bem, grande parte do significado; mantém o ritmo e vivacidade do soneto de Shakespeare; e, finalmente, até mantém a rima sem matar o poema - normalmente é o que o faz implodir,inexoralvemente, em muitas das nossas traduções de poesia.

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  8. Foi o que me pareceu, mas a minha apreciação foi puramente intuitiva. Ainda não li tudo, mas do que li parece-me que há sonetos mais felizes que outros, como é natural. Irei dando nota da minha leitura. Grato pela ajuda.

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