Shakespeare



«Para lá do organizado, do metódico, das horas certas, dos acontecimentos de calendário, das festas com os primos dos primos dos primos de um nobre, estava o verdadeiro valor universal do Inglês, esse, ele sabia da sua existência, era-lhe dado todos os dias por Shakespeare. Quis conhecer esse fenómeno, sabia de umas peças que tinha escrito, 'Hamlet' e Macbeth' para ilustrar, mas o resto não chegava muito além das fronteiras, talvez umas comédias para chorar no irreal quotidiano. Sem Shakespeare eu não podia meter o dente na Inglaterra, menos ainda na humanidade. Comecei à cata, devorando jornais, indo aos sítios mais espantosos para o ver no palco. Lembro-me dos tempos heróicos de Campden Town onde o actor Donald Wolfit deve ter dado umas vinte peças, representando sempre os principais papéis - seu Rei Lear arrebatou-me, fisgou-me no mundo que eu procurava. O final, com Cordélia nos braços, atingiu o sublime, arrasou-me, fui ao camarim para o abraçar. Precisamente para isto que eu emigrara, encontrava-me certo, encontrava o que queria. Estava feliz, a felicidade do contentamento, do homem que realiza em si uma obra de arte, efémera, mas verdadeira escultura que permanece. Lear actuava no mundo, a mensagem presente, o domínio da tragédia sem mácula. Por detrás da organização aparente dos Ingleses, vivia o caos da humanidade, o grito de sobrevivência, o andar para a frente nos domínios infinitos de um dia a dia que, à vista desarmada, era chocho, chato, insonso, mal condimentado, cerveja quente sem tempero, na decadência. Um mundo que tem o Shakespeare nunca está na decadência, esta a verdade que os meus conterrâneos vedavam no seu panorama míope. O Shakespeare puxava outros lá para longe, para fora do âmbito do jornal, das partidas e chegadas, das sessões solenes, da energia ociosa. Quem não tem um Shylock na família? Quem não tem um Iago? Quem não tem um Bruto? Quem não tem um Banquo? Quem não tem um Romeu?»


9 comentários:

  1. Rúben A. é para mim uma personagem controversa.
    Dos anos 60,na Faculdade de Letras de Lx.,ficou-me uma imagem: um indivíduo que,nos intervalos, espreitava do Instituto Brasileiro, a meio-corpo, para os corredores e desaparecia,para dentro, pouco depois.Vinte anos depois, vim a saber que era o Rúben A.
    Mais tarde, "Os Meninos de Ouro" da Agustina...
    E a leitura dos livros dele. Tenho que confessar que não tenho uma opinião acabada.
    Mas penso que fez bem em lembrá-lo.Obrigado.

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  2. Li apenas os três volumes da autobiografia «O mundo à minha procura». Comprei também as «Páginas» e «O outro que era eu», descobri que tinha, numa colecção qualquer, «A Torre de Barbela», mas ainda não li qualquer um deles. Provavelmente nem tão cedo o farei, porque cometi o erro de começar por aquilo que gosto mais, a autobiografia. Gosto muito de autobiografias.
    O que refere a propósito da passagem do Ruben A. pela Faculdade de Letras de Lisboa remeteu-me para a apreciação que ele próprio faz desse tempo. Julgo que não se adaptou a Lisboa, começou por falhar o acesso a Direito, acabou por ir parar a Letras, mas sempre num quadro de indefinição e de insucesso. Em desespero de causa, quando as prescrições apertaram, mudou-se para Coimbra, onde conseguiu levar o barco a bom porto, mas ainda assim com dificuldade. Vou reler essa parte e pode ser que encontre algumas notas que valha a pena realçar.
    No que respeita a Agustina, confesso-lhe que me faltam referências para chegar lá...

    Lembrei-me deste excerto do Ruben A. que transcrevi por duas razões: a paixão por Shakespeare e a alusão ao actor (Donald Wolfit) cuja vida serviu de inspiração ao camareiro (Ronald Harwood) para a peça «O Camareiro», representada, há pouco tempo, no Teatro D. Maria II. Existe também um filme, de 1983 (se não estou em erro) com o Albert Finney no principal papel, mas infelizmente não encontrei nada «postável» sobre ele na net.

    O seu comentário sobre Ruben A. lembrou-me que tenho um livro intitulado «A escrita dissidente - autobiografia de Ruben A.» que ainda não li, e que agora fiquei com vontade de ler. Voltarei ao assunto quando souber nais. Obrigado eu, APS.

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  3. Volto por ter dado conta que no meu comentário acima me equivoquei nas datas, no que respeita à passagem do Ruben A. pela Faculdade de Letras de Lisboa, porque me refiro à passagem como aluno que é muito anterior aos anos 60. Presumo que nessa altura ele seria docente, e não aluno. Julgo que essa parte da vida dele estará nas «Páginas» e não no «O mundo à minha procura».

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  4. Não posso precisar, exactamente,a(s) data(s)dessa imagem, ainda lembrada. Mas terá sido entre finais de 1964 e 1968,com toda a certeza.
    Entretanto e com o seu comentário fiquei a saber de uma série de coisas que desconhecia sobre Ruben A. Grato por isso. Não sei se ajudo, mas o meu exemplar de "A Torre de Barbela" é do Círculo de Leitores.

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  5. Siempre me es gratificante recorrer el mundo de los blogs… y encontrar algunos como el tuyo. También tengo la esperanza que alguna vez pueda verte por el mío, que también se escribe en portugués, sería como compartir esta pasión por escribir que une a tantas personas y en tantos lugares...

    Sergio

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  6. «O outro que era eu» é um trabalho excelente de Ruben A. Recomendo, literariamente falando.
    :)

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  7. Obrigado. Registo o seu comentário para efeitos de orientação da minha lista de leituras :-)

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  8. Apaixonante texto!!!
    Ser e sempre ser: eis a questão.

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