As mulheres


Não creio que as mulheres tenham problemas de solidão. Estão preparadas para a solidão e, em geral, para toda a espécie de sofrimento; a natureza dotou-as com singulares poderes de resistência, o que os doutos alquimistas diziam ser humor frio e incapaz de maturidade intelectual. Acho mesmo que a solidão é um estado natural da mulher; e por isso todos os movimentos ascéticos que envolviam retiro e culto da experiência espiritual, desde as vestais de Roma até às Damas do Amor Cortês, na Provença, partiam dum sentimento feminino muito acentuado. Os homens não encaram bem esse protótipo de mulher espiritual, porque ele é o único que recria a independência feminina depois do primeiro Éden. E diz-se primeiro Éden porque, segundo as Escrituras, houve, antes de Eva, uma mulher pura, inteligente e igual ao homem, de grande condição metafísica, porém cruel e sumamente poderosa. Chamava-se Lilith. Em suma, o mito da mulher fatal, que o homem teme e, ao mesmo tempo, pretende conhecer como sua verdadeira metade.

O dilema é este: nós as mulheres, somos prosaicas, sobretudo quando somos naturais. É próprio daqueles que são delicados e frágeis o serem terra-a-terra, porque isso lhes dá a impressão de estarem mais protegidos. A realidade protege mais do que os sonhos, do que as coisas imaginárias.

Agustina Bessa-Luís, Dicionário Imperfeito, Guimarães Editores, p. 192-193 e 195-196

4 comentários:

  1. Gosto da Agustina Bessa-Luís, li alguns livros mas este que cita não.
    Como mulher revejo-me em alguns dos dados que emanam do texto. Tenho que encontrar este "Dicionário Imperfeito". É delicioso este excerto.

    Da autora esta citação encontrada na net:
    "Há uma parte da solidão que não podemos compor, e é melhor que assim seja, porque é na solidão que assenta a diferença tão falada. É isso que se receia: que nos proíbam a solidão, esse pequeno espinho que afinal nos faz solidários na multidão."

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  2. O livro é recente, Ana, como se pode ler aqui:
    http://dererummundi.blogspot.com/2009/06/dicionario-imperfeito_29.html

    Tenho com a escrita da Agustina Bessa-Luís o mesmo problema que tenho com a escrita da Clarice Lispector, isto é, não consigo ler os livros usando o método habitual, ou seja, começando pelo princípio e seguindo, ordenadamente, as páginas até ao fim. Fico preso nos detalhes, nas ideias, nas frases, que parece que se vão soltando, à medida que vou lendo. Por isso tenho especial predilecção por este livro.
    E também achei deliciosos estes excertos. Julgo que o encanto resulta da mistura de «verdades» intuitivas com intuições muito discutíveis. Ainda bem que gostou! :-)

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  3. Obrigado eu, pela visita.
    E parabéns pela sua «Oliveira», que é uma delícia.

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