Há felizmente o estilo




- Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio... Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isto. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã, num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?... a nossa vida apresenta-se ali como algo... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é a maneira subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade e significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? De uma dessas tremendas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos?


6 comentários:

  1. Dois amores de estimação:
    - Herberto Helder e Hyeronimus Bosch. O detalhe que escolheu do Jardim das Delicias é fenomenal!
    -Da escrita poética de Herberto Helder o trecho que escolheu fala por si mesmo - é a razão de viver, o caos_ordem_caos_ordem; arrumação_pensamento_arrumação_do Amor e da Morte. Temas que me fascinam e me fazem perder tempo_"meses_anos_meses_anos"...

    Obrigada por este belíssimo trecho, hoje caíu mesmo bem! :)
    Quanto a uma frase chave que retirei daqui de um pensamento da Agustina, faltou dizer-lhe, no local próprio, que não quis copiar o seu post, embora na essência lho tenha roubado (sorrir)

    ResponderEliminar
  2. Pese embora H. H. não ser "muito lá de casa", considero-o o nosso maior poeta português vivo.
    Depois, este excerto, meu caro "c. a.", é excelente. E casou-o, mais uma vez, de forma perfeita, na minha modesta opinião.

    ResponderEliminar
  3. Para Ana: Hyeronimus Bosch é uma paixão desde os meus tempos de criança (andaria pelos dez anos quando vi, pela primeira vez, um quadro seu). Do Herberto Helder só tenho este livro, que comprei há precisamente trinta anos. Ou seja, conheço muito pouco e mal. Vi que recentemente foi publicado um livro com obra completa. Já o namorei... :-)
    Escolhi para título do post uma frase do excerto que transcrevi, mas o título do texto (será um conto? confesso que não sei...) é «Estilo». Ainda bem que gostou!
    E sinta-se à vontade para «roubar» o que lhe apetecer. É sempre um prazer constatar que os nossos gostos são contagiantes. No fundo, é, precisamente, o «contágio» que torna enriquecedor este exercício.

    ResponderEliminar
  4. Para APS: a sua opinião sincera é um acto de amizade que muito prezo. Como acima refiro, comprei este livro há trinta anos, já não lembro sequer porquê. Tenho uma vaga ideia que terá sido por ter lido algures que se tratava de poesia sem versos (faz sentido?), e por causa daquele meu velho problema com a poesia, de que já lhe falei. Os nossos diálogos recentes levaram-me de volta às minhas prateleiras, onde fui descobri-lo, arrumado há trinta anos. Constatei que começa precisamente no lugar em que o seu post, no Arpose, me colocou, ou seja, na identificação da necessidade (de pôr ordem no caos). Por isso, ainda que H.H. possa ser (acredito que seja) o nosso maior poeta vivo, a verdade é que para mim o que lhe deu importância foi o seu post, no «Arpose»... Obrigado.

    ResponderEliminar
  5. Li Os Passos em Volta há tempos. Fiquei maravilhado com essa «pedra preciosa» da nossa literatura.

    ResponderEliminar