A escrita (ainda)

A palavra é m espartilho das ideias - diz-se. É o pior (...) Agora mesmo eu estou aqui, difuso neste ambiente de fumo de cigarro, cansado, e tenho flores na secretária, cartas, retratos, o candeeiro apagado, livros, tinta, pés frios, uma carroça martela a calçada - e tudo é presente ao mesmo tempo e tenho uma ideia sumária sobre tudo, e há gente na vizinhança falando, e portas cá em casa batendo, e um garoto assobia lá fora, mais carroças, um pássaro num telhado e o céu azul, respiro e repouso. Tudo isto é exacto e simultâneo. Como descrevê-lo porém sem lhe destruir a interpenetração e a verdade de ser simultâneo? 

Vergílio Ferreira, Diário Inédito, Bertrand Editora, p.26

10 comentários:

  1. O nosso Vergílio devia estar em Melo - pela carroça que refere. E, na Av. E. U. da América, nunca devia ter os pés frios...Lisboa é outra coisa.
    Esta malandrice, c. a., porque não concordo que a palavra seja um espartilho das ideias. A menos que o nosso vocabulário seja exíguo. O que não seria o caso do Vergílio Ferreira, que até andou no Seminário...

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  2. Não li o "Diário Inédito" do Vergílio Ferreira mas é um escritor que gosto muito, talvez porque ilumina. Acho que ele sabe estar em silêncio...

    Gostei das palavras dele, às vezes é difícil expressarmos numa só palavra um conjunto de ideias. Ser simples também é difícil. Vou procurar o "Diário" depois de concluir o que ando a ler.
    Obrigada.:)

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  3. O nosso Vergílio estava em Évora, APS, a ensinar o «rosa,rosae» às pobres crianças. Creio que a dificuldade maior não é a palavra, mas conseguir transmitir, com ritmo, o movimento à nossa volta, e talvez seja o que está subjacente à ideia que expressou. Um dos aspectos mais interessantes desta edição é permitir a observação das sucessivas emendas que ele introduziu no texto. Este livro lê-se muito bem. Gostaria de ler, também, a «Conta corrente». Veremos se consigo.
    As minhas desculpas por só responder agora, mas estou fora do meu sítio, com acesso mais condicionado à net. Para a semana tudo voltará ao normal. Uma boa semana!

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  4. Tem razão, Ana, é muito difícil ser simples. Se gosta de Vergílio Ferreira não tenho dúvida que gostará de ler este livro. Uma boa semana também para si!

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  5. Às pobres crianças, diz bem, c.a., ele que várias vezes refere que não gostava de ser professor.
    Não gostar de ser professor e ensinar latim e grego... Pobres crianças!

    Concordo com APS: não entendo como é que a palavra pode ser um espartilho para um escritor como Vergílio Ferreira. Se era, como teria sido se não fosse?

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  6. Não conheço este Diário inédito, mas se for na linha da Conta-corrente imagino que não lhe falta veneno.

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  7. «Se era, como teria sido se não fosse?» Exactamente o que me ocorreu, MR, e, para mim, um dos aspectos mais interessante desta edição do «Diário» é o facto de permitir observar o trabalho árduo para chegar ao nível que a escrita atingiu. Isto é, no «Diário» VF confessa a dificuldade, e as emendas que fez no próprio «Diário» permitem constatar até que ponto foi verdadeiro nessa confissão.
    E é um pouco «venenoso», sim, mas talvez este aspecto se tenha agravado com a idade (normalmente agrava). Não posso dizer, porque ainda não li a «Conta Corrente».

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  8. Talvez descrevendo como ele o descreve, C.a. A interpenetração e a simultaneidade estão lá, nem que seja «agregadas» ao conjunto pela formulação da dúvida final. :-)
    Mas concordo que, para certas ideias, a palavra é um espartilho… como para outras ideias é uma espoleta. ;-D

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  9. Sim, tem razão Luísa, estão lá. E neste excerto, curiosamente, apenas uma emenda mínima, que passo a transcrever:
    "uma carroça /martela/ a calçada"

    E talvez mereça a pena colocar aqui mais uns excertos...

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  10. Virgílio Ferreira...
    Sempre a braços com a procura da palavra mais justa, mais exacta. Um "dizer" muito próprio que me encanta.

    L.B.

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