A verdade está em Vargas Llosa

Ian Berry, Perú, 1989, Copyright Ian Berry/Magnum Photos

Hotel Bolivar, Lima, 17 de Julho [de 1975]

Logo à saída do aeroporto, nos muros e paredes sujas de inscrições várias, lê-se «Kissinger, go home» e outros desabafos de igual eloquência.
A realidade das coisas igual à sua própria caricatura. Táxis, a cair de podres, sem suspensão e sem buzina, são os velhos 'Plymouth', 'Chrysler', 'De Sotto', dos anos Cinquenta em Portugal.
Cá fora, nas imediações do hotel, postados a uma esquina, dois gigantescos tanques com uma malta patibular lá em cima, de metralhadora em riste. (Houve aqui recentemente uma greve da polícia que pôs durante umas horas a cidade a saque! Daí a intervenção da tropa.)
Os economistas ensinam que o dinheiro atrai o dinheiro, e a pobreza a pobreza - regra confirmada. A miséria e O Museu do Ouro. Cada Terceiro Mundo é um mundo à parte.
Pelo passeio fora, em folhetos espalhados pelo chão, um pobre diabo vende 'As obras de Kalinine', 'A instrução pública na URSS' e 'A História das Revoluções'.
O que é ser peruano?
A definição não se encontrará certamente nas estatísticas, nos compêndios de História ou nos relatórios dos sociólogos - está nos romances. A verdade está em Vargas Llosa.

Marcello Duarte Mathias, Os dias e os anos - Diário 1970-1993, No Devagar Depressa dos Tempos - Vol II, D. Quixote, p.102

6 comentários:

  1. Não posso concordar inteiramente com o registo do autor.
    Um romancista pode retratar bem uma sociedade e focar a realidade nua e crua. Seguindo o caso apresentado, pode até dar uma resposta sobre o que é ser peruano, mas não pode relacionar "o ser peruano" num registo de longa duração. Note-se, que gosto imenso de Vargas Llosa e da sua escrita interventiva.
    Boa noite!

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  2. Boa noite, Ana. Concordaria consigo se não fosse o caso de me parecer que este é um registo que, pela sua natureza, não é de «longa duração». Explico: em 1975, numa viagem ao Perú, este autor - um diplomata de carreira - chegou à conclusão que para entender o que o rodeava não bastava ler os relatórios económicos nem, tão pouco, os compêndios de História. O conhecimento necessário para esse efeito estava nos romances de Vargas Llosa. Ainda não li Vargas Llosa. Confesso-lhe, até, que não tinha intenção de ler, por ser um pouco avesso às escolhas da Academia (talvez seja preconceituoso, mas a verdade é que há escolhas que nunca entendi). Todavia, depois de ler isto, fiquei curioso.
    Julgo que já aqui referi que gosto particularmente de diários. Folheei este na livraria, atraído pelas datas em causa, mas a verdade é que está a revelar-se muito melhor, a todos os títulos, do que alguma vez esperei. Recomendo.
    Votos de uma boa semana para si.

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  3. A sua epígrafe do Blogue (Tsao Hsueh-chin, via Ondina Braga) corrobora, de alguma forma, o que acabou de escrever, neste seu último comentário.

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  4. Tem razão, APS. Não tive consciência disso quando escrevi, mas é um facto.

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  5. Vargas Llosa tem livros fantásticos. Conversa na catedral (o primeiro que li) é fabuloso, um dos melhores que li.
    Embora não conheça a América do Sul, concordo com o que diz Marcelo Duarte Matias e também com o comentário de APS.
    Posso não concordar com algumas das escolhas da Academia, mas no que se refere aos escritores sul-americanos galardoados, mais recentemente (Miguel Angel Asturias, Gabriel Garcia Marquez e Vargas Llosa), são absolutamente justos.
    Fiquei contentíssima com a atribuição do galardão a Vargas Losa.

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  6. A literatura é importantíssima para se ver como pensa e vive um povo, nas suas várias épocas. Como o são a pintura e a fotografia. Etc., etc.

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