A vida a bordo

Se um dia soubesse contar das minhas viagens e das pessoas que nelas conheci, penso que teria um assunto de romance.
Primeiro, as viagens por mar. Há na vida a bordo certa intimidade, ao mesmo tempo espontânea e fictícia, que marca tanto os viajantes como a tripulação de um sinal humano e fútil. É-se nessas viagens mais sincero e mais insensato que nunca. Creio mesmo que ali, no meio das águas, cada qual se mostra o que deveras é, com as suas grandezas e as suas misérias, como se, postos de parte preconceitos e medos, todos quisessem, enfim, representar o papel que lhes ditou o grande autor.
Tais viagens são, sem dúvida, as mais interessantes e as mais inverosímeis também. O encanto que a ociosidade e o mar concedem àqueles dias no barco desfaz-se logo que se anuncia o porto de desembarque, ninguém se conhecendo mais depois, cada um ingénua e precipitadamente ocupado em reajustar a máscara do mundo.
Maria Ondina Braga, Estátua de sal, Círculo dos Leitores (ed. refundida e ampliada), p.167


5 comentários:

  1. Não tenho grande experiência de viagens por mar. Há anos que penso em fazer um cruzeiro.
    Gostei deste excerto da Maria Ondina Braga. Certas pessoas muito facilmente se confessam a estranhos. Imagino que isto se pode passar num barco, que deve ser uma vida um pouco irreal.

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  2. Embora nunca tenha feito uma viagem por mar, suficiente (em tempo), gostei deste seu poste, c. a..

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  3. Caro c. a.
    Gostei muito deste seu post, da associação entre o belíssimo texto de Ondina Braga e "Brideshead Revisited", uma das minhas séries televisivas preferidas.

    Evocou-me também as alegorias medievais da Nau dos Insensatos, ou ainda os clássicos "Lifeboat" de Hitchcock e "Ship of Fools" de Stanley Kramer...

    Obrigada!

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  4. Gostei do excerto e do Brideshead Revisited porque foi uma história que me marcou profundamente. Viagens são o meu sonho!
    Viagem por mar fiz também por curto tempo. Foi uma nostalgia agradável porque a minha cabeça estava em terra e o mar foi o repouso da vista e das memórias.
    Bom Domingo e boa viagem até Nova Iorque, se for esse o caso!

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  5. Tenho uma paixão assolapada pelo oceano e por grandes barcos, mas não encontro a menor semelhança entre os gigantescos centros comerciais, instalados em ilhas flutuantes, que actualmente cruzam os mares, e a minha ideia de barco. Por isso não tenho a menor vontade de fazer uma viagem, por curta que seja, num «barco» deste tipo.
    Tenho muita pena que os aviões tenham posto fim às grandes viagens em barcos «a sério», aquelas que as pessoas faziam por necessidade de ir de um lado para outro, e não por mero recreio. Viagens como a ficcionada neste episódio do «Brideshead Revisited». Uma série de luxo! Uma das minhas preferidas também.

    Caros Miss Tolstoi, APS, Virgínia Jorge e Ana,
    Estou feliz por saber que gostaram e grato pela visita. Já tinha saudades...
    Um abraço a todos, com votos de boa semana.

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