A verdade não é coisa que se ame

Para confessar-se, a pessoa divide-se em duas, e uma delas mente. Para ser sincera, a pessoa ou acredita demasiado em si mesma, ou demasiado acredita nas suas próprias criações. No primeiro caso, é costume achar-se que mente como homem; no segundo, que mente como artista. Quando precisamente ela põe toda a sua honestidade em ser verídica. Ou, se quisermos, não há desonestidade a que ela não se arrisque por amor da verdade. A explicação deste mistério talvez esteja em que a verdade (exista ou não) não é coisa que se ame, ou não pode ser a verdade.

Jorge de Sena, in prefácio do livro «Confissões», de Jean-Jacques Rousseau, Portugália, p.20-21

Verdades práticas

No tempo em que o Diabo florescia, os pânicos, os terrores, as inquietações eram males que beneficiavam de uma protecção sobrenatural: sabia-se quem os provocava, quem presidia ao seu desabrochamento; abandonados agora a si mesmos, eles transformaram-se em "dramas interiores" ou degeneraram em "psicoses", em patologia secularizada.

E.M.Cioran, Silogismos da amargura, Letra Livre, p.21

Voar como os pássaros

outra vez peixe cozido?

não sabendo a sorte que é poder comer qualquer coisa, em vez de lhe servirem tubos de plástico num prato, acompanhados por um copo de soro

qual o sabor dos pensamentos?

das palavras?

da minha carne que apodrece?

a minha boca está seca, não percebo para que me tiram a saliva, de vez em quando alguém me molha os lábios e sinto o gosto fresco da água misturado com o sabor de pequenas fibras de algodão

(o algodão doce da feira popular)

também não percebo por que não me dão comprimidos para tomar, como é que esperam que eu melhore? um daqueles de chupar, de enrolar na lígua, daqueles que nos devolvem a súbita tranquilidade de não tarda estás fino

gostava de ser um pássaro e saborear o milho que me atirassem, enquanto andasse no terreiro com o meu andar

desajeitado, inclinado, ávido

porque ninguém tira a saliva aos pombos, nem mete tubos por eles adentro, e se fosse um pássaro podia sair daqui, por uma janela aberta, e voar até às nuvens, onde pudesse sentir o seu gosto húmido de algodão

Pandora




Dantes vivia sobre a terra a raça humana
a recato da desgraça e do penoso trabalho,
e das doenças horríveis, que trazem a morte aos homens.
Mas a mulher, com suas mãos, ergueu a grande tampa da vasilha,
e dispersou-os, preparando à humanidade funestos cuidados.
Dentro da vasilha, na morada indestrutível,
abaixo do rebordo, ficou apenas a Esperança. Essa
não se evolou. Antes, já ela tornara a colocar a tampa,
por desígnios de Deus detentor da égide, que amontoa as nuvens.
Mas tristezas aos centos erram entre os homens.
Cheia está a terra de desgraças, cheios os mares.
As doenças, umas de dia, outras de noite,
visitam à vontade os homens, trazendo aos mortais
o mal, em silêncio, pois Zeus prudente lhes retirou a voz.
E assim não há maneira de evitar os desígnios de Zeus.



Hesíodo, Trabalhos e Dias, 90-105, in Hélade, Antologia da Cultura Grega, organização e tradução de Maria Helena Rocha Pereira, Guimarães, p.109.