Afinidades electivas

No mundo ordenado de uma Europa onde a burguesia procurava o apogeu (que afinal não veio) Napoleão podia dizer, com tranquilidade e ressonância, que a Tragédia era a Política.
Os tempos passaram e essa ordem de civilização, frustrada no Velho Mundo, reagiu e alcançou apreciável plenitude nos Estados Unidos da América mas, logo em seguida, entrou em fase de decadência, ou, pelo menos, de grave conflito. A Tragédia transbordou os cenáculos da Política e derramou-se pelo asfalto da própria Linguagem dos homens. De certa forma foi um retorno às origens.
É a Linguagem que melhor se percebe, hoje, o caráter quase irremível do caos. Ao falar, ao pretender comunicar-se com o seu companheiro revolvente no drama pintado tanto por Tocqueville quanto por Orwell, a humanidade consegue apenas balbuciar quando quer falar de tudo e em especial da Morte, quando outrora achara meios de lhe emprestar um verdadeiro esplendor(...)
Somos os herdeiros de Aristóteles, o primeiro a - na Poética - reduzir a Tragédia ao efeito que produz no espetador. Mas herdeiros perdidos num deserto.
Parece definitivamente morta a era em que a civilização ocidental, ébria por um poder verbal que conseguia a suprema arte de distinguir entre o 'Ser' e o 'Não Ser', viveu a ilusão generosa do humanismo, grega, primeiro, cristã depois.
Talvez pressentindo o que viria a suceder, Shakespeare pediu às noites de verão o que o racionalismo não nos conseguia dar e entregou a Lear a chave de um 'Dizer' já desesperado e a Hamlet a incumbência de nos lembrar o 'Ser' ou 'Não Ser'. Já era, no fundo, um recurso terrível à Loucura como antítese da lucidez com que a Grécia tratou Édipo e este dos seus (nossos) problemas.
Tendo confiado a Tragédia à Política julgando que ela não mais retornaria à Linguagem, o homem ocidental entrou no deserto.
Hoje, incapaz de falar, de 'destragedisar' a Tragédia pela sua expressão, o homem ocidental parece resignado a esperar as patas dos cavalos mongóis.
Para depois - quem sabe? - recomeçar tudo de novo.

Victor Cunha Rêgo, O Trágico, in Liberdade, O Independente, p.173 a 175



Com envoi ao PROSIMETRON, neste terceiro aniversário. Que tenha uma vida longa!

4 comentários:

  1. Obrigada, Miss Tolstoi. Para si também.

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  2. Para começar, agradeço a minha nona parte do "envoi".
    E Purcell tem muitos apreciadorse entre os prosimetronistas. :)
    Boa Páscoa!

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  3. Ainda bem, MR! Votos de Boa Páscoa para si também! :-)

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