Quando considero a minha vida fico apavorado ao achá-la informe. A existência dos heróis, aquela que nos contam, é simples: vai direita ao fim como uma seta. E a maioria dos homens gosta de resumir a sua vida num preceito, por vezes uma jactância ou numa lamentação, quase sempre numa recriminação; a sua memória fabrica-lhes complacentemente uma existência explicável e clara. A minha vida tem contornos menos firmes. Como sucede frequentemente, é talvez o que não fui que a define com maior justeza: bom soldado, mas não um grande homem de guerra; amador de arte, mas não aquele artista que Nero julgou ser, ao morrer; capaz de crimes, mas não carregado de crimes.
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano, trad. de Maria Lamas, Ulisseia, p.25