O princípio

Vejo uma objecção a qualquer esforço para melhorar a condição humana: é que os homens são talvez indigno dele. Mas repilo-a sem dificuldades: enquanto o sonho de Calígula se mantiver irrealizável e todo o género humano se não reduzir a uma única cabeça oferecida ao cutelo, teremos que o tolerar, conter e utilizar para os nossos fins; sem dúvida que o nosso interesse será servi-lo. O meu processo baseava-se numa série de observações feitas desde há muito em mim próprio: toda a explicação lúcida me convenceu sempre, toda a delicadeza me conquistou, toda a felicidade me tornou moderado. E nunca prestei grande atenção às pessoas bem intencionadas que dizem que a felicidade excita, que a liberdade enfraquece e que a humanidade corrompe aqueles sobre quem é exercida. Pode ser: mas, no estado habitual do mundo, é como recusar a alimentação necessária a um homem emagrecido com receio de que alguns anos depois ele possa sofrer de superabundância. Quando se tiver diminuido o mais possível as servidões inúteis, evitado as desgraças desnecessárias, continuará sempre, para manter vivas as virtudes heróicas do homem, a longa série de verdadeiros males, a morte, a velhice, as doenças incuráveis, o amor não correspondido, a amizade recusada ou traída, a mediocridade de uma vida menos vasta que os nossos projectos e mais enevoada que os nossos sonhos: todas as infelicidades causadas pela divina natureza das coisas.

Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano, trad. de Maria Lamas, Editora Ulisseia, p.98-99 







10 comentários:

  1. Saúde-se o regresso, em que Yourcenar é uma constância de fidelidade.
    Bom 2014!

    ResponderEliminar
  2. É como disse o Unamuno. No meu caso apenas não sei bem se é mais preguiça ou inquetação... :-)

    ResponderEliminar
  3. Há muito tempo que eu não vinha aqui.
    BOM ANO!

    Gostei desta junção. Este Dido e Eneias é um dos mais belos espetáculos que vi, no CCB, há uns anos. Não sei se esta companhia (austríaca?) ainda existe.

    ResponderEliminar
  4. Saudades de a ler, MR, mas a culpa é toda minha. BOM ANO!

    Não sei, também. Comprei o DVD há umas semanas. É, de facto, um belíssimo espectáculo.

    ResponderEliminar
  5. A ética da servidão humana é a maior causa de todos os desastres...

    ResponderEliminar
  6. belo e assaz pertinente a Yourcenar num tempo de desconfiança da humanidade.

    ResponderEliminar
  7. Espero que volte. Gosto tanto desta casa.

    ResponderEliminar
  8. Obrigada, Júlia. Não tenho tido oportunidade de o fazer, mas vou tentar :-)

    ResponderEliminar
  9. Bom ano de 2015.
    Espero que uma vez por outra partilhe o seu bom gosto.
    Boa noite.:))

    ResponderEliminar