Dentro de mim

Abarco todo o horizonte
Dentro de mim há só água,
água estagnada, dos charcos
represos da minha mágoa.

Tenho tudo nos meus olhos,
as cores todas, e ponho
um leve acento de angústia
nas margens tristes do sonho.

Dentro de mim só há sombra.
O que possa acontecer
vai rasgando espaços brancos
nas fronteiras do meu ser.

Albano Martins, Assim são as algas, Campo das Letras, p.24

O beijo

O beijo é só uma palavra
escolhida
ao acaso. O que as tintas
encobrem e descobrem
e os pincéis revelam,
mas não nomeiam,
é a ordem
que se pressente
em todas
as nebulosas. Que sempre
a ordem precede
a desordem. E essa
é uma das leis
indeclináveis
do amor. A sua regra
de ouro, que não admite
excepções.

Albano Martins, «Assim são as algas», Campo das Letras, p.387-388,

(do livro «As imagens e as legendas», a propósito de
«O beijo» de Gustav Klimt )

Um instante de nudez perfeita

J.M.W.Turner, Snow Storm - Steam-Boat off a Harbour's Mouth

Escrevo contra o vento,
frente ao mar.
Volúveis,
as mãos sondam
a salina intimidade das águas.

***

Há um instante em que a memória é estreita
para conter o mar, o sal, os navios,
a penumbra branca das gaivotas.

Um instante de nudez perfeita.

Albano Martins, «Assim são as algas», Campo das Letras, p.63-64.

Março

Chove lá fora.
Há um silêncio enevoado e triste
a saber a demora
sobre tudo o que existe.

Minha alma recolhe-se do frio
e une as mãos às mãos do sentimento.
Chove lá fora. Engrossa o rio
do meu pensamento.

O dia agora é um lençol molhado
estendido ao longo dos caminhos.

Eu sou este dia de março
a arrefecer o amor dos primeiros ninhos.

Albano Martins, «Assim são as algas» - poesia 1950-2000, Campo das Letras, p.22

Insónia

M.C.Escher, Three Worlds, 1955

Perguntarás aos peixes

como se dorme de olhos abertos. Porque o sono

dos vivos é um fosso de víboras

insones. E precisas

por isso

de estar atento. De dormir

acordado.

[Albano Martins, «Assim são as algas - poesia 1950-2000 », Campo das Letras, p.414]

Ninguém ama de olhos fechados

Dormir, sim,
quando o silêncio
dói. Mas nunca
se dorme quando
o amor
é uma insónia. Ninguém
ama de olhos
fechados.

Albano Martins, «Palinódias, Palimpsestos»

[ poema 'surripiado' no «ComLivros-Teresa»; ver ainda uma entrevista, aqui]