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10/06/12

Mudar de vida

Solúvel e insolúvel este povo.
Na memória dos outros e na sua mesma
.

Jorge de Sena, Antologia Poética, Guimarães, p.226



Glória

Um dia se verá que o mundo não viveu um drama.

Todas estas batalhas, todos estes crimes,
todas estas crianças que não chegaram a desdobrar-se em carne viva
e de quem, contudo, fizeram carne viva logo morta,
todos estes poetas furados por balas
e todos os outros poetas abandonados pelos que
nem coragem tiveram de matar um homem,
toda esta mocidade enganada e roubada
e a outra que morreu sabendo que a roubavam,
todo este sangue expressamente coalhado
à face íntegra da terra,
tudo isto é o reverso glorioso do findar dos erros.

Um dia nos libertaremos da morte sem deixar de morrer.

Jorge de Sena
, Antologia Poética, Guimarães, p.56




(...)
A História não olha a quem fica no meio
E o que foi é de quem fôr

26/05/12

Para APS, que gosta de pássaros

... DE PASSAREM AVES
                                           À memória de Sá de Miranda


Das aves passam as sombras,
um momento, no chão, perto de mim.
No tardo Verão que as trouxe e as demora, 
por que beirais não sei
onde se abrigam piando
como ao passar chilreiam.


Um momento só. Rápidas voam!
E a vida em que regressam de outras terras
não é tão rápida: fiquei olhando
as sombras não, mas a memória delas,
das sombras não, mas de passarem aves.


Jorge de Sena, Antologia Poética, Guimarães, p.63




05/05/12

Amor

Amor, amor, amor, como não amam
os que de amor o amor de amar não sabem,
como não amam se de amor não pensam
os que de amar o amor de amar não gozam.
Amor, amor, nenhum amor, nenhum
em vez do sempre amar que o gesto prende
o olhar ao corpo que perpassa amante
e não será de amor se outro não for
que novamente passe como amor que é novo.
Não se ama o que se tem nem se deseja
o que não temos nesse amor que amamos,
mas só amamos quando amamos o acto
em que de amor o amor de amar se cumpre.
Amor, amor, nem antes, nem depois,
amor que não possui, amor que não se dá,
amor que dura apenas sem palavras tudo
o que no sexo é o sexo só por si amado.
Amor de amor de amar de amor tranquilamente
o oleoso repetir das carnes que se roçam
até ao instante em que paradas tremem
de ansioso terminar o amor que recomeça.
Amor, amor, amor, como não amam
os que de amar o amor de amar o amor não amam.

Jorge de Sena, Antologia Poética, Guimarães, p.191



16/07/11

Lá em cima

Quem não achou o Céu - aqui em baixo -
Lá em cima não o há-de encontrar -
Que os Anjos sempre alugam casa ao lado
Da que formos habitar.

Jorge de Sena, 80 poemas de Emily Dickinson, Guimarães, p.187 



25/06/11

Jorge de Sena

Jorge de Sena foi um escritor, um ensaísta e um poeta português. Grande. Morreu no estrangeiro e o regime celebrou-se com as suas ossadas. Sena era do tempo em que os intelectuais se enojavam com o ambiente irrespirável do país. Agora os intelectuais não só não se enojam como apoiam ambientes irrespiráveis. Não tenho bem a certeza é que sejam intelectuais. Duvido, porém, que, se fosse vivo, Sena apreciasse o fútil exercício. O seu justíssimo orgulho amargo não se daria bem com piedades póstumas. Eduardo Lourenço falou, certeiro, do «regresso do indesejado». Anos a fio, no antigo como no novo regime (...) trataram-no sempre como um intruso, como um estranho ao cânone oficial e ao «amiguismo» circular. Quando olho para aquilo a que apelidam de «literatura portuguesa» - uma categoria pífia onde cabe tudo, desde o romance encomendado a jornalistas da moda, a meninos e meninas dados a tremuras cerebrais lá onde nem existe uma cabeça - percebo melhor por que é que um homem da dimensão de Sena teve de ir embora daqui para ser Jorge de Sena. Porque aqui matam as pessoas em vida para, depois de mortas, as exibirem como troféus nacionais. Sena acompanhou a minha adolescência e a minha juventude. Como ensaísta, como camonista, como poeta, como romancista, como contista. Em suma, como um Homem. A melhor homenagem que se deve fazer a seres raros como Sena é lê-los e deixá-los entregues à luminosa eternidade a que pertencem.

João Gonçalves, Contra a Literatice e Afins, Guerra e Paz, p. 50-51
 

18/11/10

L'Été au Portugal

Que esperar daqui? O que esta gente
não espera porque espera sem esperar?
O que só vida e morte
informes consentidas
em todos se devora e lhes devora as vidas?
O que quais de baratas e a baratas
é o pó de raiva com que se envenenam?

Emigram-se uns para as Europas
e voltam como eram só mais ricos.
Outros se ficam envergando as opas
de lágrimas de gozo e sarapicos.

Nas serras nuas, nos baldios campos,
nas artes e mesteres que se esvaziam,
resta um relento de lampeiros lampos
espanejando as caudas com que se ataviam.

Que espera se espera em Portugal?
Que gente ainda há-de erguer-se desta gente?
Pagam-se impérios como o bem e o mal
- mas com que há-de pagar-se quem se agacha e mente?

Chatins engravatados, peleguentas fúfias
passam de trombas de automóvel caro.
Soldados, prostitutas, tanto rapaz sem braços
ou sem pernas - e como cães sem faro
os pilha poetas se versejam trúfias.

Velhos e novos, moribundos mortos,
se arrastam todos para o nada nulo,
Uns cantam, outros choram, mas tão tortos
que a mesquinhez tresanda ao mais simples pulo.

Chicote? Bomba? Creolina? A liberdade?
É tarde, e estão contentes de tristeza,
sentados em seu mijo, alimentados
dos ossos e do sangue de quem não se vende.

(Na tarde que anoitece o entardecer nos prende)

Lisboa, Agosto 1971

Jorge de Sena, Versos e alguma prosa de
prefácio e selecção de textos de Eugénio Lisboa, co-ed. arcádia e Moraes, p.116-117


20/10/10

Madrugada

Há que deixar no mundo as ervas e a tristeza,
e ao lume de águas o rancor da vida.
Levar connosco mortos o desejo
e o senso de existir que penentrando
além dos lodos sob as águas fundas
hão-de ser verdes como a velha esperança
nos prados da amargura já floridos.

Deixar no mundo as árvores erguidas,
e da tremente carne as vãs cavernas
aos outros destinadas e às montanhas
que a neve cobrirá de álgida ausência.
Levar connosco em ossos que resistam
não sabemos o quê da paz tranquila.

E ao lume de águas o rancor da vida

Madrid, 4 de Setembro 72

Jorge de Sena, Versos e alguma prosa de,
prefácio e selecção de textos de Eugénio Lisboa,
Co-edição da arcádia e Moraes, p. 127


Oliver Stone, Platoon, 1986

11/09/10

Glosa à chegada do Outono

O corpo não espera. Não. Por nós
ou pelo amor. Este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura acetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sede, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera; este pousar
que não conhece, nada vê, nem nada
ousa temer no seu temor agudo...

Tem tanta pressa o corpo! E já passou,
quando um de nós ou quando o amor chegou.

1958

Jorge de Sena, Versos e alguma prosa de
prefácio e selecção de textos de Eugénio Lisboa,
Co-edição da arcádia e Moraes, p. 56


Com envoiMR

19/06/10

A verdade não é coisa que se ame

Para confessar-se, a pessoa divide-se em duas, e uma delas mente. Para ser sincera, a pessoa ou acredita demasiado em si mesma, ou demasiado acredita nas suas próprias criações. No primeiro caso, é costume achar-se que mente como homem; no segundo, que mente como artista. Quando precisamente ela põe toda a sua honestidade em ser verídica. Ou, se quisermos, não há desonestidade a que ela não se arrisque por amor da verdade. A explicação deste mistério talvez esteja em que a verdade (exista ou não) não é coisa que se ame, ou não pode ser a verdade.

Jorge de Sena, in prefácio do livro «Confissões», de Jean-Jacques Rousseau, Portugália, p.20-21

Pantha rei

  Nenhum homem consegue banhar-se duas vezes no mesmo rio .  Porque não é o mesmo homem, nem é o mesmo rio. Tudo flui.    Heraclito, em vers...