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22/02/10

Uma aluna

Dino Valls [ mutus liber ] 1996, respigado aqui


«Tudo parecia ali feio e insuportável, a revolta contra o que tinha de ser já nem ânimo lhe dava ou força como outrora quando era diferente e tinha orgulho, ímpar e vaidoso. Pelo reflexo na janela devolvia-se-lhe a imagem.
Evitou olhar-se. Três horas ainda pela frente, a encurtar intervalos, naquela noite de calor sentiu a presença fixa, rendida ao apelo de si, de uns olhos profundos em que se concentravam todos os sentimentos, sorrisos e promessas. Uma aluna.
Na pausa para um breve café, indiferente à acumulação de colegas no estreito corredor, uma maquineta de café em copos de plástico e um fingimento de colheres, aqueles olhos incendiados procuraram-no, mais a voz, ligeiramente baixa, quase a segredar-lhe: "parece cansado, professor, e triste". Não , ele não estava cansado, nem triste, sim um pouco cansado, talvez, muito cansado mesmo "esta época do ano, sabe, esgota" e ela sabia, "andamos todos tristes", a precisar de férias, felizmente "está quase, são só mais duas semanas, com licença então, até já".
Virou costas no momento exacto em que lhe subia, vindo do seu íntimo, a ânsia de a olhar, perdendo-se, afogado de desolação, nos braços daquela voz.
Não lhe dissera sequer "obrigado pela preocupação" ou coisa parecida, que se diz assim, nem ao menos uma palavra que, por ambígua, desse uma esperança de que estava realmente triste, uma tristeza irremediável, daquelas que se querem dizer a alguém, de preferência a um anónimo que não retorne, que não a use como razão para ficar e que se não diz a uma mulher porque há o risco de desencadear amor.
É que ela não era a longínqua anónima que pode ser a fácil confidente, segura, cujos sentimentos se não despertam nem potenciam. Sem o conceber com a clareza com que o fenómeno já se desenhava, sintomas todos alinhados, ele receava-a. Temia que o sentimento que se lhe desprendera e de que se ia apercebendo fizesse nascer a situação que não saberia como gerir. O desejo era, porém, iniludível. Uma brisa de fantasia, asa roçagante, passou, breve, retemperadora, a afagá-lo. Quando ela se sentou de novo no seu lugar, escolar, eficiente na pose, o caderno entreaberto, o ar ligeiramente distante, como se nada tivesse sucedido, imaginava-lhe já a nudez pudicamente restringida ao menos íntimo.
Fecha-se os olhos para se ver melhor o mundo desejado. Em frente a si estava o objecto do desejo. Ao abri-los tinha a realidade. Encerrou-os por um segundo. Não suportou alhear-se. Doía demais. Notou-lhe a extensa nuca, o corpo longilíneo. Naquela noite as aulas pareceram-lhe um mal possível. Impossível continuar aluna.»  

17/12/09

Talvez...

«Talvez eu pudesse ter dado a quem nos lê um excerto do teu passado mas não o fiz, como uma fotografia que se retira da sala porque o fotografado morreu ou deixou de existir no nosso coração e ele nota que o mataram porque deixou de estar ali e matamo-lo assim mesmo aos olhos de quem estiver e ele que veja porque os mortos não têm olhos para ver que os mataram, a minha fotografia estava ali e já não está e eu finjo que não dói fazendo de conta que não vi e estavam tão contentes quando disseram «olha, querido, tu ali!» e eu tão feliz.
Mas não te dei, Manuela, e és agora uma sombra, ténue, inerte, pouco mais és, Manuela, enquanto personagem deste livro que a tua função, não tens mais biografia do que o que fazes como sobrevivência e este acanhado lugar onde a exerces, não há mais pessoa em ti do que o emprego, nem mais mulher porque não há ninguém para quem o ser».

19/09/09

«A dez mil quilómetros de ti»

«Chegara ao escritório, mal tivera tempo de pousar a mala ou de despir ao menos o casaco, quando a viu, no tampo envidraçado da mesa, entre notificações e umas quantas inutilidades, uma carta, com a tarja de correio aéreo, as marcas da distância enrugadas no envelope.
Sentou-se, e na ânsia controlada que era o seu modo de sobreviver ao espanto, leu-a como se fosse alheia:


"Ouve-me. Ontem parece que acabou tudo o que me trouxe aqui. Vi-me como se a um espelho. Um sentimento de isolamento, o desejo de não estar, a incapacidade de fruir com os outros a autenticidade da vivência que eles gozam e lhes basta, entre a infâmia da intriga permanente e a indiferença face à miséria que nos circunda.
Hoje, estonteado pela luz, tentei sair à rua. Qual toupeira cega, não cheguei além do primeiro quarteirão empoeirado. O sol, o inclemente sol, perseguindo-me a cabeça, o zumbido de insectos alados anunciando um apetite voraz pelo meu sangue, hordas de crianças, pedintes, míseras, pertinazes na arte de perseguir por uma moeda, batedores do alheio, o estrangeiro como uma mina e o eldorado e, em tudo, um halo de cinzas, de destruição, de morte ainda fresca. Cambaleando de dor, regressei.
Dizem-me que é uma nação a fazer-se. Dizem-me que no ar condicionado se redigem prodígios de arquitectura legal. Na rua, ostensivas e arrogantes, patrulhas motorizadas, carros de combate e camiões, provocadora, uma parabólica esventrando os céus, sereias funcionárias estiradas nas praias, o luxuoso exibicionismo na areia suja, cochichos de fervilhante conspiração, de doentia maledicência entre copos, corpos e comezainas.
Não sei por quanto tempo ficarei, nem sei já se vale a pena aquilo que faço.
Sei que há um «eu» que me trouxe aqui, sem ao menos o conforto de uma ideologia que sinta minha, de uma causa a que chame própria, de uma pátria que me reclame. Patriota de pátrias adoptadas, pária por vocação, estrangeiro exilado de si, que nenhuma família em rigor reclama como seu.
Mas conheço também aquele que nestas linhas se confunde e se lamenta e tenta mostrar que perdido está, trancado num quarto de hotel, desejando que não toque o telefone, que nada suceda, que ninguém o convide.
O momento agónico da hora do almoço aproxima-se e com ele a descida necessária à casa de jantar. Fosse eu, nesse local de requinte, qual deck elegante de um navio, o solitário passageiro taciturno, aquele que a ninguém fala e de quem ninguém se aproxima, absorto na ausência como se num livro se concentrasse, indiferente e alheio. Pudesse, ao menos, essa categoria espectacular e trágica do homem só despertar, por um momento que fosse, o primeiro impulso do amor alheio que é a comiseração e a simpatia. Mas, trancado aqui e do mais isolado, resta-me o mundo fictício da minha literatura real, suas personagens e a promiscuidade dos seus actores.
Dei comigo esta manhã, como se no cansaço do longínquo tivesse encontrado a incapacidade de regressar, no cais do meu próprio desembarque eu fosse aquele que acena aquém da viagem, um interminável adeus a ter ficado.
Esgota-se-me a capacidade de sofrer, o absurdo da condição de homem dividido, estendendo a mão como aquele que, aqui por uma côdea de afecto, ali por um halo de ternura, numa esquina incógnita a aguardar e exaurir à saciedade, esgotados os sentidos, conseguisse com isso sobreviver.
Longe da pátria onde não nasci, do lar que nunca tive, resta-me o fio desta correspondência e a esperança morna que a recebam.
Talvez tudo tenha envelhecido a ponto de não haver mais do que, amanhã, o alçar a âncora lodosa de um cargueiro, o chiar retesado dos cabrestos e seu cordame, a maré a subir e com ela a hora de zarpar, orçando a bombordo primeiro em marcha a ré, e força a vante rumo ao norte mítico, ao equador da tranquilidade, à náusea de semanas apenas com o mar por companhia.
Recolheria pela tarde ao camarote. Talvez eu te tivesse então e a nudez reconfortante do teu corpo, a meu lado, na ânsia de dormir, dormir só e tão-somente, que há dias em que um homem desespera de si e se cansa do resto.
Ouve-me. Parece-me que tudo acabou. Ontem vi-me, como se num álbum de fotografias recordasse o longíquo parente, virando a folha, esquecido o nome, a memória ténue. Ontem vi-me ali, irreconhecível e de mim próprio incompreendido.
Em breve fecha a mala postal. Quando me leres sabe-se lá como estarei. Os deuses apiedam-se muitas vezes abreviando o mal real com a embriaguez do sonho. Bebamos pois à vida, sejamos do mais esquecidos e do resto indiferentes, no confinado espaço, a cadência salgada do mar na escotilha, batendo o ritmo do coração, os solavancos dos nossos corpos em viagem.
Espera por mim. Peço-te que leias os Laços de Família. É o que nos falta. Seremos uma, se eu voltar."


Muito tempo depois, relida a carta teria a certeza do que nela se dizia: o amor doloroso, feito da ausência ansiosa, pareceu-lhe, enfim, a felicidade possível, o máximo de todos os mundos. Momentos depois estaria na rua, todo o mundo de obrigações quotidianas à sua espera, daquelas que não fazem história nem mudam o mundo. Um desejo de que aquele infinito momento se pudesse prolongar tomou conta de si, o mar à vista, o céu a confundir-se com ele
[José António Barreiros, «Contos do desaforo», Ed. Presença, p.54-57]

Pantha rei

  Nenhum homem consegue banhar-se duas vezes no mesmo rio .  Porque não é o mesmo homem, nem é o mesmo rio. Tudo flui.    Heraclito, em vers...