Foi uma tristeza...

«Foi uma tristeza nova a que ontem me visitou na casa de chá, no meio das minhas amigas macaenses. Estava connosco um moço que tinha graça, e ríamos. Falou-se de jogo, de dança, de papagaios. Nas outras mesas, mulheres e homens metropolitanos, macaístas, um ou outro chinês. No ar, música suave. A tarde tombava.
E eu a meditar na minha tristeza. Fazia o seu exame enquanto contava do papagaio da costureira em Luanda, a receber as senhoras à porta: «Entra, meu bem, estás bonita!... Que material!» Os companheiros da mesa acharam engraçado, puseram-se a repetir o palrar do pássaro.
A minha tristeza passava a fronteira envidraçada do salão, seguindo rua além, e, atrás dela, qual vestido de cauda, um rasto de desolação.
Sinto-me agora frequentemente cínica, egoistamente triste, mas ontem foi diferente - um sentimento calmo e fundo, tão fundo que fiquei abismada diante dele, tão calmo que me vi a aceitá-lo, humilde, como o lavrador aceita a seca ou a monção.
A minha tristeza enchia a sala, o largo lá fora, o próprio céu; pousava-se em todas as coisas; era tudo. Desistir de mim, ceder, entregar-me a ela, parecia a única solução. Não sei explicar, tratava-se de um grande problema. Não era só eu, o mundo inteiro. Um acontecimento inevitável, igual à morte.
Acreditei que todas aquelas pessoas estavam tristes comigo, sem mesmo o saberem - gente que ria e que contava histórias de papagaios. O próprio Deus, longe ou perto, tinha de ser um Deus triste. Cheguei a ver um halo de tristeza aureolando a cabeça de cada um, e todas as nuncas vergarem ao peso da fatal eleição.
As horas corriam. A noite fechou-se. Despedimo-nos.
Já na rua, ao dobrar da esquina, um homem embargou-me o passo.
Era novo, esguio, de olhos cinzentos. Vi-lhe a cor dos olhos quando acendeu o isqueiro para o cigarro, e vi, no escuro, a chama trémula dar-lhe às pupilas claras tons de pérola. Falou, mas as palavras não lhas fixei. Guardei, sim, esta cena: a minha tristeza a abraçá-lo, longa, carinhosamente, do jeito que os homens gostam de ser abraçados.
Não sei o tempo que durou aquilo, nem me lembro de mais nada. Só sei que, ao atravessar a rua para entrar em casa, o brilho dos olhos de pérola se repetia nas pedras da calçada, à luz da lua

[ Maria Ondina Braga, «Estátua de Sal», Ulmeiro, p.36-37]    

4 comentários: