O gato

«O elevador estava parado. Entrei eu nele e entraram outros, pouca gente. Ainda não era ou talvez já tivesse passado a hora da saída dos 'funcionários' e o Torel naquele momento também dava um pequeno, quase nulo contingente de passageiros.
Fazia sol e havia tranquilidade.
 Como é que o diabo de um gato se havia de meter debaixo do enorme elevador, já depois do homem das máquinas ter dado o seu toque nas rodas?
O gato vai morrer, pensámos nós e olhámos suponho que com vergonha uns para os outros.
O elevador devia ficar parado!, dar o alarme ao outro que ia a subir!
No entanto, não parou. O guarda-freio e o condutor eram escravos da casa das máquinas que punha os elevadores em movimento; consideraram uma fatalidade o gato morrer e não tiveram uma ideia nem um gesto para o impedir. Que é que os passageiros podiam fazer? Dar um grito? Seria tremendo, e quem o ousaria?
 Cobarde!, chamava-me eu sem coragem ouvindo a seguir os miados terríveis, raivosos ou dilacerantes do gato. Enquanto o gato berrou, o que durou pouco mas ainda assim bastante para cada um se poder acusar de seu matador, havia um mal-estar disfarçado nos passageiros. Ficaram à espera.
O condutor, alto e gordo, uma cara agradável que se via todos os dias, mostrava uma compaixão discreta pelo animal: aquilo dura pouco... já tem acontecido...ficou entalado.
E durou.
Mas a surpresa, a dor, a violência de que o pobre gato foi vítima ficaram ecoando. Quem se subtraía a senti-las em si, na sua consciência, nos seus nervos, onde quer que fosse?
Teria o gato girado com a roda?
Dados aqueles poucos miados terríveis calou-se.
Na cara do condutor transparecia então a inteligência do caso, queria ele explicar: eu não lhes dizia?
E lá ficou no seu posto. Nós saímos necessariamente aliviados.
Subir e descer neste veículo em cada dia do ano é cumprir uma pequena e ordinária rota, a pino, que sem exagero se pode considerar tão edificante como dar largas voltas pelo mundo.
Naquele dia tinha morrido o gato, noutros tudo se apresentaria banal, noutros voltariam os factos extraordinários.
É muito útil haver coisas e lugares constantes onde afinal a vida varie. Neles se nos afina a sensibilidade.» 

[Irene Lisboa, «Esta cidade! - O Lavra», Editorial Presença, p.98-99]  
 

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