No tempo em que o Diabo florescia, os pânicos, os terrores, as inquietações eram males que beneficiavam de uma protecção sobrenatural: sabia-se quem os provocava, quem presidia ao seu desabrochamento; abandonados agora a si mesmos, eles transformaram-se em "dramas interiores" ou degeneraram em "psicoses", em patologia secularizada.
E.M.Cioran, Silogismos da amargura, Letra Livre, p.21
...E é sempre mais pacífico aceitar causas exteriores e do acaso do destino, que razões pessoais ou culpas interiores nossas...
ResponderEliminarA função do Diabo tem sido muito mal compreendida. A vida era muito mais fácil quando se acreditava no Diabo. Ao ler esta frase de Cioran lembrei-me daquela parte, na missa, em que o padre diz: «o Senhor esteja convosco», e os fiéis respondem: «Ele está no meio de nós». E assim se coloca o Diabo fora, o que é sempre mais cómodo. Imagine como seria se o padre dissesse aos fiéis, «o Diabo está dentro de vós»... Julgo que até a própria Igreja prefere, a essa, a ideia que o Diabo não existe. E é concebível a ideia de Deus sem Diabo? E podemos nós viver sem Deus, uma qualquer ideia de Deus? É que quando tudo se passa dentro de nós, o mundo fica apertado, sombrio...
ResponderEliminar«À midi sur les pentes à demi sableuses et couverts d'héliotropes comme d'une écume qu'auraient laissée en se retirant les vagues furieuses des derniers jours, je regardais la mer que, à cette heure, se soulevait à peine d'un mouvement épuisé et je rassasiais les deux soifs qu'on ne peut tromper longtemps sans que l'être se dessèche, je veux dire aimer et admirer.» Continuam as minhas dificuldades com o último verbo... :-)
Obrigado, APS.
1ºParágrafo:
ResponderEliminaraceito e concordo com a sua primeira afirmação.
O contraditório era o Diabo, e o Diabo era contraditório (sem artigo).
Eu aceito melhor a existência de um mistério que, enquanto vivo ainda posso tentar decifrar ou compreender, do que a simplicidade de haver uma causa (cruel - pelos padrões humanos -, altamente inexplicável e infinita): Deus.
2º Parágrafo:
Volta o contraditório: "aimer et admirer" - físico e espiritual: raramente compatíveis, do meu ponto de vista. Percebo perfeitamente a ideia de Cioran (o texto em francês é do Cioran, não é?). Não a consigo é traduzir de forma que não seja a mais simples e literal.
P.S.: eu não lhe disse que me era estimulante?,c.a..
Tentei não intervir, mas o assunto é demasiado interessante para me ficar pelo silêncio.
ResponderEliminar1. Apesar do Diabo estar arredado da oratória actual, julgo que é impossível viver sem a figura do diabo.
Deus ao possibilitar o livre arbítrio, a escolha entre o bem e o mal de que Santo Agostinho é mestre a expor, conduz para essa figura enigmática que é o Diabo.
2. Correndo o risco de blasfemar, não posso pensar que a figura do Diabo desapareceu, Deus e o Diabo são o verso e o reverso, o bem e o mal. Deus precisa do Diabo.
3. Considerar não ser "pedagogicamente certo usar o Diabo na oratória" talvez se dissipe... os anos 50/60 levaram a Igreja a ter um discurso mais positivo, daí aparecer menos o Diabo.
4. A Igreja adapta-se aos tempos, os discursos vão mudando mas a essência é a mesma. Julgo que entre teólogos a figura não se dissipou. Talvez este Papa mude lentamente esta visão, quem sabe?
Ele é um intelectual...
É interessante o tema que colocou, gostava de ler o livro de Cioran, onde é que o arranjou?
Peço imensa desculpa por ter-me metido. Fiz a função do Diabo,ao meter-me entre a conversa de deuses...
Para APS:
ResponderEliminarO texto do 2.º parágrafo é do "L'Été" de Camus. As minhas desculpas, devia ter referido.
Não tinha pensado no "aimer et admirer" com esse sentido (físico e espiritual), mas no sentido de "imanência" e "transcendência".
Fiquei a pensar na incompatibilidade que refere (entre o físico e o espiritual). Será que podia desenvolver um bocadinho? Entendo que, por vezes, são planos difíceis de compatibilizar (no sentido de «pôr a par») mas não me parecem, por regra, incompatíveis...
PS: estimulante sim, sem dúvida! São ideias soltas, tipo «melodias standard», abertas, incompletas, a partir das quais é possível criar a nossa própria música... Um desafio :-)
Confesso, Ana, que conheço muito mal a "posição oficial" da Igreja relativamente ao Diabo. Julgo que ouvi, há uns tempos, o D. José Policarpo falar sobre isso, a propósito do «Caim», de José Saramago, mas já não consigo reproduzir bem o que ouvi. Em qualquer caso, não era propriamente à doutrina oficial que me referia no comentário acima.
ResponderEliminarQuanto ao livro de Cioran, já o tenho encontrado em várias livrarias, julto até que o vi na Fnac. A edição é recente, pelo que não creio que exista dificuldade em encontrá-lo.
Ainda bem que o que leu a motivou a intervir e lhe suscitou a vontade de ler o livro. Aconteceu-me o mesmo quando li as citações que estão no «Arpose» e, sobretudo, os comentários de APS que é quem, verdadeiramente, conhece a obra deste autor. Aliás, se não fosse ele eu nem fazia ideia que o Cioran existiu...
O diabo poderá ter perdido a sua condição primordial de "causa". Mas isso não conduziu necessariamente à internalização do locus de causalidade. É sempre possível apontar culpados externos. Vulgarmente, os outros. O Inferno são os outros, como alguém terá dito...
ResponderEliminarÉ verdade, Sara, tem razão. Existe, ainda, essa modalidade. Julgo que foi Sartre que a definiu dessa maneira. Mas de todas essa talvez seja a que me atrai menos...
ResponderEliminar"O inferno são os outros" é uma frase de Sartre.
ResponderEliminar... da peça de teatro "Huis Clos", recordei-me agora.
ResponderEliminar"Mea culpa, mea culpa".
ResponderEliminarA nossa cultura tem raízes judaico-cristãs, logo o sentimento de culpa é endógeno ao indivíduo.
Não li Cioran, estou fora do contexto, será um crítico do existencialismo?
A associação a Sartre não me tirou as dúvidas.
Estas minhas refelxões partiram do seu primeiro comentário.
"O inferno são os outros", é de um nhilismo a toda a prova. Já li há muito tempo Sartre só restou a essência e não os pormenores.
Porém, para rebater esta ideia e defender a existência do Diabo coloco uma afirmação de Agustina colocada por Luís Barata no Prosimetron:
"Todos nós nos movemos dentro do quadro do nosso narcisismo, e é portanto difícil aceitar os outros, a não ser para os desfigurar".
- Agustina Bessa-Luís, As sete chaves.
Um existencialista é um narcisista logo não precisa do binómio Deus e o Diabo.
nihilismo
ResponderEliminarDesculpe se a minha opinião foi extrema. Não sou defensora de Deus ou do Diabo. Cada um acredita se quiser.
ResponderEliminarDefendo a existência de algo sobrenatural e maravilhoso que pode ter sido criado pelo homem.
A paixão leva-me à defesa do que acho belo como o conceito de Inferno e Céu, Lua, Sol, Deus/Diabo transposto pelo homem nas artes.
Assim de repente lembro-me de Blake, de Dante, de Botticelli e por aí fora... homens que consagraram a sua beleza ao sagrado e ao profano.
Não sou adepta de lavagens ao cérebro mas sim à liberdade de opinião, aos confrontos saudáveis e construtivos.
Boa tarde :))
Nada há a desculpar, Ana. É sempre bom saber que as minhas escolhas, se não tiverem outro mérito, são, pelo menos, estimulantes... :-)
ResponderEliminar