A moralidade

A moralidade. Seria simplório pensar que o problema moral em relação aos outros consiste em agir como se deveria agir, e o problema moral consigo mesmo é conseguir sentir o que se deveria sentir? Sou moral à medida que faço o que devo, e sinto como devo sentir? De repente a questão moral me parecia não apenas esmagadora, como extremamente mesquinha. O problema moral, para que nos ajustássemos a ele, deveria ser simultaneamente menos exigente e maior. Pois como ideal é ao mesmo tempo pequeno e inatingível. Pequeno se se atinge: inatingível, porque nem ao menos se atinge. «O escândalo ainda é necessário, mas ai daquele por quem vem o escândalo» - era no Novo Testamento que estava dito? A solução tinha de ser secreta. A ética da moral é mantê-la em segredo. A liberdade é um segredo.
Embora eu saiba que, mesmo em segredo, a liberdade não resolve a culpa. Mas é preciso ser maior que a culpa. A minha ínfima parte divina é maior que a minha culpa humana. O Deus é maior que minha culpa essencial. Então prefiro o Deus, à minha culpa. Não para me desculpar e para fugir mas porque a culpa me amesquinha.

Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H., Relógio D'Água Editores - Ficções, p.69 


4 comentários:

  1. Creio que é Cioran que fala sobre a excelência do budismo, que é uma moral sem deus.
    Por outro lado, também prendi 2 sardaniscas (lagartixas), assim, na infância. Mas não tive a menor sensação de culpa. E elas libertaram-se, de noite.
    O texto é interessante. O vídeo, excelente, e muito bem ajustado ào texto.

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  2. Concordo com Cioran.
    Este livro de Clarice Lispector é um livro difícil, que só comecei a «entender» depois de ouvir uma entrevista que o seu mais recente biógrafo, Benjamim Moser, deu há uns tempos, e que pode ser ouvida aqui: http://www.tabletmag.com/podcasts/18829/woman-of-mystery/
    A espiritualidade judaico-cristã assenta numa relação tortuosa/torturada com Deus, característica que este texto coloca em evidência, o oposto relativamente ao budismo e, de facto, o vídeo é excelente para dar uma ideia disto.
    Ainda bem que gostou! Obrigado, APS.

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  3. Vou iniciar deste modo a minha leitura do vídeo:

    Há uns anos li bastante sobre o budismo, sobretudo, o budismo Zen. Maravilhou-me e continua a encantar-me, embora, não o consiga alcançar devido às minhas raízes ocidentais, talvez ligadas ao texto acima representado.

    Os budistas não podem matar nenhum ser vivo, por isso, são vegetarianos, embora, por vezes, comam carne quando é oferecida pela população (isto em relação aos monges).

    o clip é de uma beleza incomensurável: o som, a imagem e a ideia subjacente.

    De Clarice Lispector, talvez um dia comente.

    Quanto a pedras, já senti algumas...

    Boa noite e agradeço a beleza. Não sei como desencanta estas pequenas maravilhas, parabéns!

    Coloquei um texto que, apesar de diferente, toca nesta temática se quisermos fazer associações.

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  4. Tenho andado um pouco relapso em matéria de visitas aos blogs amigos, por razões alheias à minha vontade, mas este fim de semana irei ver.
    Descobri o filme por acaso. Julgo que existe em DVD.
    Obrigado, Ana. Uma boa noite para si!

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