Há que deixar no mundo as ervas e a tristeza,
e ao lume de águas o rancor da vida.
Levar connosco mortos o desejo
e o senso de existir que penentrando
além dos lodos sob as águas fundas
hão-de ser verdes como a velha esperança
nos prados da amargura já floridos.
Deixar no mundo as árvores erguidas,
e da tremente carne as vãs cavernas
aos outros destinadas e às montanhas
que a neve cobrirá de álgida ausência.
Levar connosco em ossos que resistam
não sabemos o quê da paz tranquila.
E ao lume de águas o rancor da vida
e ao lume de águas o rancor da vida.
Levar connosco mortos o desejo
e o senso de existir que penentrando
além dos lodos sob as águas fundas
hão-de ser verdes como a velha esperança
nos prados da amargura já floridos.
Deixar no mundo as árvores erguidas,
e da tremente carne as vãs cavernas
aos outros destinadas e às montanhas
que a neve cobrirá de álgida ausência.
Levar connosco em ossos que resistam
não sabemos o quê da paz tranquila.
E ao lume de águas o rancor da vida
Madrid, 4 de Setembro 72
Jorge de Sena, Versos e alguma prosa de,
prefácio e selecção de textos de Eugénio Lisboa,
Co-edição da arcádia e Moraes, p. 127
Oliver Stone, Platoon, 1986
O Barber (anacrónico no tempo [e até gosto de o ouvir]) lança embora, e sempre, uma aceitação angustiada sobre tudo. E Jorge de Sena é sempre importante recordá-lo - nunca o consegui decorar, e não sei porquê.
ResponderEliminarContra todas as expectativas, acaba por fazer conjunto, este seu poste, c.a.. No seu amplo horizonte de perspectivas de morte (já agora, deixe-me ser polémico, também).
Tão bonoitos pos versos de Jorge de Sena, figura magistral da nossa literatura. Tão pouco falado, citado... Parabéns por o ter feito!
ResponderEliminar(e obrigada pelos parabéns que deixou no meu blog... Acontece.)
o falcão
Jorge de Sena, tanta poesia escreveu e tão pouco reconhecido foi e continua a ser!...
ResponderEliminarOutro dia escrevi sobre isso e sobre a amargura que sentia!
Um abraço,
Manuela
O «Adagio», do Barber, faz parte da banda sonora original, e creio que é a música que confere intemporalidade à cena (não só por ser anacrónica, mas também).
ResponderEliminarVi o «Platoon» no ano em que se estreou, por cá, numa outra fase da minha vida, quando a morte é uma realidade ainda distante. Na altura o que mais me marcou foi o aspecto moral. Nunca mais voltei a vê-lo, do princípio ao fim, mas ainda assim continuo a tê-lo bem presente. É um daqueles filmes que nunca mais esqueci.
Ontem «tropecei» neste poema de Jorge de Sena, e quando o lia fui levado para a música de Barber, e para esta cena do filme, e para este personagem que nela morre, o sargento Elias. Julgo que o poema tem tudo a ver com ele. Continuo, todavia, com alguma dificuldade em entender o que Sena quis dizer com o verso (deixar) «ao lume de águas o rancor da vida». O que será o «lume de águas?».
Julgo que entendo o que quer dizer quando refere o «amplo horizonte de perspectivas de morte». No filme existe um sargento mau (o Bob/Tom Berenger) e um sargento bom (o Elias/Willem Dafoe), e é o mal que prevalece, o que descobrimos só no fim, porque no início, os termos estão invertidos. Neste contexto, os caminhos de morte são, necessariamente, mais que muitos e de vários tipos... Curiosamente, o poema conduziu-me, precisamente, até esta «porta». Li-o como uma espécie de senha para a caixa de Pandora... [ e provavelmente, estou a ser ainda mais polémico ]. Ficar-lhe-ei grato se me ajudar a encontrar alguma ordem, APS ... :-)
Obrigado, MJ Falcão, obrigado Manuela. Jorge de Sena era uma lacuna (grave) nas minhas leituras, que tenho estado a tentar colmatar. O despertar para a minha ignorância devo-o a um certo «post» sobre Camões, que encontrei num blog da minha especial predilecção, mais precisamente este:
ResponderEliminarhttp://arpose.blogspot.com/2010/04/transforma-se-o-amador-na-coisa-amada.html
Os vossos comentários lembram-me que há sempre algo de bom e mau em todas as coisas... :-)
Um abraço às duas.
Vi Platoon quando estreou e marcou-me bastante. Depois disso vi-o só mais uma vez.
ResponderEliminarÉ um filme impressionante.
A música é bela.
Gosto muito de Jorge de Sena mas, por vezes, não o sei descodificar. A frase que cita é também para mim enigmática. Talvez um exercício de estilo, por ser poesia, ou então, se o lume atinge as águas possivelmente, é porque a coisa é muito negra, dura, ou é a dor extrema!
Aviso:
ResponderEliminartudo o que eu disser, c. a.,salvo 1 ou 2 factos, é especulação.
Este poema de Jorge de Sena é uma repescagem do que não entrou em "Conheço o sal...", mas veio a integrar "Poesia-III (da Moraes), em 1978. O "...ao lume das águas..." (apesar de Madrid) poderá ser a revisão do poema (ou a memória), em Sta. Barbara (madrugada/nascer do dia/ pôr do Sol), com o róseo-rubro do Sol sobre o Oceano Pacífico.
Penso (ou especulo), no entanto, que a chave do poema "Madrugada" estará no poema anterior de Jorge de Sena, também datado de Madrid (3 Setembro 72)que se inicia: "Amor, saudade tenho desta vida./ Por mais que a viva ou a deteste, ou ranja/ de raiva os dentes por não estar saciado(...)/ tenho saudades já..."
Acho que Eugénio Lisboa, ao seleccionar, deveria ter incluido (?)os 2 poemas que me parecem geminados.
(c.a.:não me volte a lançar desafios destes!...:-)
Efectivamente, o «rancor da vida» pareceu-me ser o «núcleo» do poema, e por isso me fazia tanta falta entender o que é o «lume de águas». Depois da sua «especulação» ficou tudo bem mais claro. É uma frustação tão grande não entender... E fico a perceber que isto de fazer «antologias» não é para qualquer um... :-) Grato pela (sempre) preciosa ajuda, APS.
ResponderEliminarSomos dois, Ana, somos dois... :-)