04/01/10

As palavras

«O silêncio é mais voluptuoso que o som adulador de uma voz. Butch demorava cada dentada na torrada. Eu recolhia as migalhas e côdeas de pão uma por uma, pegava-lhes com as polpas dos meus dedos e punha-as no prato.
Bebíamos várias chávenas de chá.
Depois de comer a torrada, ele começava a massajar as entradas da testa e a formar remoinhos com mechas de cabelo.
Eu limpava cuidadosamente as manchas da toalha com um pano húmido. Depois, olhava as minhas unhas, tirava delas alguma porcaria, retinha na minha boca o sabor do café amargo.
As palavras não se gastam, dizia ele, mas uma pessoa gasta-se em palavras.»

L'eté invincible

«Depuis cinq jours que la pluie coulait sans trêve sur Alger, ele avait fini par mouiller la mer elle-même. Du haut d'un ciel qui semblait inépuisable, d'incessantes averses, visqueuses à force d'épaisseur, s'abattaient sur le golfe. Grise et molle comme une grande éponge, la mer se boursouflait dans la baie sans contours. Mais la surface des eaux semblait presque immobile sous la pluie fixe. De loin en loin seulement, un imperceptible et large mouvement soulevait audessus de la mer une vapeur trouble qui venait aborder au port, sous une ceinture de boulevards mouillés. La ville elle-même, tous ses murs blancs ruîsselants d'humidité, exhalait une autre buée qui venait à la rencontre de la première. De quelque côté qu'on se tournât alors, il semblait qu'on respirât de l'eau, l'air enfin se buvait.
Devant la mer noyée, je marchais, j'attendais, dans cette Alger de décembre qui restait pour moi la ville des étés. J'avais fui la nuit d'Europe, l'hiver des visages. Mais la ville des étés elle-même s'était vidée de ses rires et ne m'offrait que des dos ronds et luisants. Le soir, dans les cafés violemment éclairés où je me réfugiais, je lisais mon âge sur des visages que je reconnaissais sans pouvoir les nommer. Je savais seulement que ceux-là avaient été jeunes avec moi, et qu'ils ne l'étaient plus.
Je m'obstinais pourtant, sans trop savoir ce que j'attendais, sinon, peut-être le moment de retourner à Tipasa. (...) 
(...) Je pris à nouveau la route de Tipasa. 
Il n'est pas pour moi un seul de ses soixante-neuf kilomètres de route qui ne soit recouvert de souvenirs et de sensations. L'enfance violente, les rêveries adolescentes dans le ronronement du car, les matins, les filles fraîches, les plages, les jeunes muscles toujours à la pointe de leur effort, la légère angoisse du soir dans un coeur de seize ans, le désir de vivre, la gloire, et toujours le même ciel au long des années, intarissable de force et de lumière, insatiable lui-même, dévorante une à une, des mois durant, les victimes offertes en croix sur la plage, à l'heure funèbre de midi. Toujours la même mer aussi, presque impalpable dans le matin, que je retrouvai au bout de l'horizon dès que la route, quittant le Sahel et ses collines aux vignes couleur de bronze, s'abaissa vers la côte. (...)
À midi sur les pentes à demi sableuses et couverts d'héliotropes comme d'une écume qu'auraient laissée en se retirant les vagues furieuses des derniers jours, je regardais la mer que, à cette heure, se soulevait à peine d'un mouvement épuisé et je rassasiais les deux soifs qu'on ne peut tromper longtemps sans que l'être se dessèche, je veux dire aimer et admirer. Car il y a seulement de la malchance à n'être pas aimé: il y a du malheur à ne point aimer. Nous tous, aujourd'hui, mourons de ce malheur. C'est que le sang, les haines décharnent le coeur lui-même; la longue revendication de la justice épuise l'amour qui pourtant lui a donné naissance. Dans la clameur où nous vivons, l'amour est impossible et la justice ne suffit pas. C'est pourquoi l'Europe hait le jour et ne sait qu'opposer l'injustice à elle-même. Mais pour empêcher que la justice se racornisse, beau fruit orange qui ne contient qu'une pulpe amère et sèche, je redécouvrais à Tipasa qu'il fallait garder intactes en soi une fraîcheur, une source de joie, aimer le jour qui échappe à l'injustice, et retourner au combat avec cette lumière conquise. Je retrouvais ici l'ancienne beauté, un ciel jeune, et je mesurais ma chance, comprenant enfin que dans les pires années de notre folie le souvenir de ce ciel ne m'avait jamais quitté. C'était lui qui pour finir m'avait empêché de désespérer. Jávais toujours su que les ruines de Tipasa étaient plus jeunes que nos chantiers ou nos décombres. Le monde y recommençait tous les jours dans une lumière toujours neuve. O lumière! c'est le cri de tous les personnages placés, dans le drame antique, devant leur destin. Ce recours dernier était aussi le nôtre et je le savais maintenant. Au milieu de l'hiver, j'apprenais enfin qu'il y avait en moi un été invincible.»          

[Albert Camus, «L'été - Retour à Tipasa», Gallimard, p.99 - 109]

02/01/10

O gato

«O elevador estava parado. Entrei eu nele e entraram outros, pouca gente. Ainda não era ou talvez já tivesse passado a hora da saída dos 'funcionários' e o Torel naquele momento também dava um pequeno, quase nulo contingente de passageiros.
Fazia sol e havia tranquilidade.
 Como é que o diabo de um gato se havia de meter debaixo do enorme elevador, já depois do homem das máquinas ter dado o seu toque nas rodas?
O gato vai morrer, pensámos nós e olhámos suponho que com vergonha uns para os outros.
O elevador devia ficar parado!, dar o alarme ao outro que ia a subir!
No entanto, não parou. O guarda-freio e o condutor eram escravos da casa das máquinas que punha os elevadores em movimento; consideraram uma fatalidade o gato morrer e não tiveram uma ideia nem um gesto para o impedir. Que é que os passageiros podiam fazer? Dar um grito? Seria tremendo, e quem o ousaria?
 Cobarde!, chamava-me eu sem coragem ouvindo a seguir os miados terríveis, raivosos ou dilacerantes do gato. Enquanto o gato berrou, o que durou pouco mas ainda assim bastante para cada um se poder acusar de seu matador, havia um mal-estar disfarçado nos passageiros. Ficaram à espera.
O condutor, alto e gordo, uma cara agradável que se via todos os dias, mostrava uma compaixão discreta pelo animal: aquilo dura pouco... já tem acontecido...ficou entalado.
E durou.
Mas a surpresa, a dor, a violência de que o pobre gato foi vítima ficaram ecoando. Quem se subtraía a senti-las em si, na sua consciência, nos seus nervos, onde quer que fosse?
Teria o gato girado com a roda?
Dados aqueles poucos miados terríveis calou-se.
Na cara do condutor transparecia então a inteligência do caso, queria ele explicar: eu não lhes dizia?
E lá ficou no seu posto. Nós saímos necessariamente aliviados.
Subir e descer neste veículo em cada dia do ano é cumprir uma pequena e ordinária rota, a pino, que sem exagero se pode considerar tão edificante como dar largas voltas pelo mundo.
Naquele dia tinha morrido o gato, noutros tudo se apresentaria banal, noutros voltariam os factos extraordinários.
É muito útil haver coisas e lugares constantes onde afinal a vida varie. Neles se nos afina a sensibilidade.» 

[Irene Lisboa, «Esta cidade! - O Lavra», Editorial Presença, p.98-99]  
 

31/12/09

Lear



KING LEAR
So young, and so untender?
CORDELIA
So young, my lord, and true.
KING LEAR
Let it be so; thy truth, then, be thy dower
(...)

William Shakespeare

28/12/09

Oliveretto de Fermo

Foi valente, foi formoso e artista.
Inspirou amor, terror e respeito.

Ao pintá-lo todo nu gladiando,
gloriou seu pincel Tintoretto.

Machiavelli nos conta sua história
de assassino elegante e discreto.

Em Sinigaglia o enforcou César Bórgia...
Deixou um quadro, um punhal e um soneto.


O tempo...

«O tempo, que às vezes confirma e outras desqualifica, foi desvanecendo em si o ressentimento exasperante que no princípio lhe suscitava a recordação dessa 'velha amizade' ou desse 'amor postergado'. Com o decorrer dos meses, do compêndio de sensações nefastas que o seu nome lhe produzia, apenas sobreviveu um sabor amargo. Depois, reconsiderando a questão, acrescentou que certos laços respiram por necessidade. Eram de maior valor as cartas que a consagração do encontro, e era mais importante o augúrio amoroso que a convertação real do vínculo.»

24/12/09

Onde estiver o corpo morto é que se juntam os abutres

«Alguns fariseus perguntaram a Jesus quando é que chegava o reino de Deus. "O reino de Deus não vem como uma coisa que se possa observar", respondeu-lhes. "Não se poderá dizer: Está aqui ou está acolá. Na verdade, o reino de Deus já está no vosso meio."
Depois disse aos discípulos: "Lá virá o tempo em que desejarão ver ao menos um só dos dias do Filho do Homem e não poderão. Alguns hão-de dizer-vos: 'Olha, está aqui', ou 'está acolá'. Mas não vão atrás desses boatos, porque o Filho do Homem virá no seu dia próprio como um relâmpago que ilumina o céu dum extremo ao outro. Mas primeiro tem ele que sofrer muito e ser rejeitado pelas pessoas deste tempo.
Tal como aconteceu no tempo de Noé, assim vai ser nos dias do Filho do Homem. Comiam, bebiam e casavam-se, até ao dia em que Noé entrou na arca. Depois veio o dilúvio e morreram todos. Assim aconteceu também no tempo de Lot: comiam, bebiam, compravam, vendiam, plantavam e construíam. Mas no dia em que Lot saiu de Sodoma, caíu do céu fogo e enxofre sobre a cidade e morreram todos. Assim sucederá no dia em que o Filho do Homem aparecer.
Nesse dia, quem estiver no terraço não desça a casa para tirar de lá seja o que for, e se estiver no campo não volte para trás. Lembrem-se da mulher de Lot! Aquele que quiser salvar a vida perde-a e o que a perder, salva-a. Digo-vos que nessa noite estarão duas pessoas na mesma cama: uma será levada e a outra fica. Duas mulheres estarão juntas a moer farinha: uma será levada e a outra fica. Dois homens estarão no campo: um será levado e o outro fica.
" Nessa altura os discípulos perguntaram-lhe: "E onde vai ser isso, Senhor? "Onde estiver o corpo morto" replicou ele, "é que se juntam os abutres".» LUCAS 17,16-18,3

23/12/09

Foi uma tristeza...

«Foi uma tristeza nova a que ontem me visitou na casa de chá, no meio das minhas amigas macaenses. Estava connosco um moço que tinha graça, e ríamos. Falou-se de jogo, de dança, de papagaios. Nas outras mesas, mulheres e homens metropolitanos, macaístas, um ou outro chinês. No ar, música suave. A tarde tombava.
E eu a meditar na minha tristeza. Fazia o seu exame enquanto contava do papagaio da costureira em Luanda, a receber as senhoras à porta: «Entra, meu bem, estás bonita!... Que material!» Os companheiros da mesa acharam engraçado, puseram-se a repetir o palrar do pássaro.
A minha tristeza passava a fronteira envidraçada do salão, seguindo rua além, e, atrás dela, qual vestido de cauda, um rasto de desolação.
Sinto-me agora frequentemente cínica, egoistamente triste, mas ontem foi diferente - um sentimento calmo e fundo, tão fundo que fiquei abismada diante dele, tão calmo que me vi a aceitá-lo, humilde, como o lavrador aceita a seca ou a monção.
A minha tristeza enchia a sala, o largo lá fora, o próprio céu; pousava-se em todas as coisas; era tudo. Desistir de mim, ceder, entregar-me a ela, parecia a única solução. Não sei explicar, tratava-se de um grande problema. Não era só eu, o mundo inteiro. Um acontecimento inevitável, igual à morte.
Acreditei que todas aquelas pessoas estavam tristes comigo, sem mesmo o saberem - gente que ria e que contava histórias de papagaios. O próprio Deus, longe ou perto, tinha de ser um Deus triste. Cheguei a ver um halo de tristeza aureolando a cabeça de cada um, e todas as nuncas vergarem ao peso da fatal eleição.
As horas corriam. A noite fechou-se. Despedimo-nos.
Já na rua, ao dobrar da esquina, um homem embargou-me o passo.
Era novo, esguio, de olhos cinzentos. Vi-lhe a cor dos olhos quando acendeu o isqueiro para o cigarro, e vi, no escuro, a chama trémula dar-lhe às pupilas claras tons de pérola. Falou, mas as palavras não lhas fixei. Guardei, sim, esta cena: a minha tristeza a abraçá-lo, longa, carinhosamente, do jeito que os homens gostam de ser abraçados.
Não sei o tempo que durou aquilo, nem me lembro de mais nada. Só sei que, ao atravessar a rua para entrar em casa, o brilho dos olhos de pérola se repetia nas pedras da calçada, à luz da lua

[ Maria Ondina Braga, «Estátua de Sal», Ulmeiro, p.36-37]    

22/12/09

Paradoxo

«Dizes então que vais fazer do Certo o teu mestre e livrar-te do Errado, ou fazer da Ordem o teu mestre e livrar-te da Desordem? Se o fizeres, então não percebeste (...). É impossível, obviamente». Chuang Tsu

«Se eu disser que se comportam como partículas estou a dar uma impressão errada; o mesmo se disser que se comportam como ondas. Elas comportam-se de forma própria e inimitável, no que poderíamos chamar, tecnicamente, uma forma mecânica quântica. Comportam-se de uma maneira que é algo nunca antes visto». Richard P. Feynman

[in «Einstein e Buda - palavras comuns», editor Thomas J.Mcfarlane, estrela polar, p.71]

21/12/09

Receita para fazer um herói

Tome-se um homem
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.

Serve-se morto.


[Reinaldo Ferreira, «Nunca Mais é Sábado - Antologia de Poesia Moçambicana», org. e prefácio de Nelson Saúte, Dom Quixote, p.119]

Lembro-me de ti...

  Lembro-me de ti... Na escuridão profunda da memória, o teu olhar ilumina a estrada percorrida na história da minha vida. E sinto, em mim, ...