12/04/10

Na Holanda o demónio está no meio das vacas

Hieronymus Bosch, Saint John the Baptist in the Wilderness, 1489-1505

Na Holanda  é assim. O Demónio está no meio das vacas: não escreve poemas, não pode exercer os dons. Pensa, perde o nome. Quem esperaria dele que trabalhasse a terra ou protegesse as alimárias?

Herberto Helder, Os passos em volta, Assírio e Alvim, (4ª ed. emendada), 1980, p.17

08/04/10

I really don't know life at all

Luz



É tão difícil viver com esta gente trazer-te
dentro de mim numa atenção discreta

esconder-te viva respirar
o ar pequeno e leve em que te moves.

Alberto Soares, Escrito para a noite, INCM, p.32

mais voir un ami pleurer...


Bien sûr il y a les guerres d'Irlande
Et les peuplades sans musique
Bien sûr tout ce manque de tendre
Et il n'y a plus d'Amérique
Bien sûr l'argent n'a pas d'odeur
Mais pas d'odeur vous monte au nez
Bien sûr on marche sur les fleurs
Mais mais voir un ami pleurer

Bien sûr il y a nos défaites
Et puis la mort qui est tout au bout
Le corps incline déjà la tête
Étonné d'être encore debout
Bien sûr les femmes infidèles
Et les oiseaux assassinés
Bien sûr nos coeurs perdent leurs ailes
Mais mais voir un ami pleurer

Bien sûr ces villes épuisées
Par ces enfants de cinquante ans
Notre impuissance à les aider
Et nos amours qui ont mal aux dents
Bien sûr le temps qui va trop vite
Ces métros remplis de noyés
La vérité qui nous évite
Mais mais voir un ami pleurer

Bien sûr nos miroirs sont intègres
Ni le courage d'être juif
Ni l'élégance d'être nègre
On se croit mèche on n'est que suif
Et tous ces hommes qui sont nos frères
Tellement qu'on n'est plus étonné
Que par amour ils nous lacèrent
Mais mais voir un ami pleurer.

06/04/10

Tudo nos é limitado pela estupidez de tudo

«Mas o Penedos. Era um político, querida, não sei se sabes o que isso é. Eu também não sei, mas vou ver se descubro enquanto te vou explicando. É a pessoa de quem mais mal se diz, depois dos árbitros de futebol. E logo tu a pensares que é pela mesma razão. E eu também, mas não sei ainda bem se é. Quem o pensa são talvez os curtos de mente, que é o que eu sou por enquanto.O político tem a missão de promover o bem comum, pressupõe-se. Mas o bem comum tem sempre muitos degraus e portanto pouca comunidade. Pressupõe-se isso e depois tiram-se as conclusões, que metem quase sempre um bocado de pancadaria. A missão de um político parece óbvia, mas nada é óbvio na vida, Mónica, imaginas o que há de difícil mesmo na soma de 2+2? mas eu estava a falar-te do político. É um jogador, uma das formas mais altas de. Joga ao bem comum e às vezes a sorte sai-lhe. É a altura de lhe dizerem tudo os que não jogaram ou a quem não saiu. O bem comum tem a forma de uma ficha para jogar. E sofre tanto de solidão. É um bebedor solitário, bebe política ao canto da consciência. Não joga para ganhar, e que jogador é que joga? joga só para chatear o destino, o que joga nele é a inquietação de o chatear. Como no capitalista, no general, no artista, mas o político é um jogador infeliz porque é raro deixarem-no jogar a tempo inteiro. Mas que é que nós somos a tempo inteiro? Nem o comer nem o beber nem o fornicar e assim. Tudo nos é limitado pela estupidez de tudo e a vida é o tudo desse tudo. Muito estúpida, minha querida.» 

Vergílio Ferreira, «Em nome da terra», Quetzal, p.225 - 226 

05/04/10

Protesto contra a lentidão das fontes

Malangatana Ngwenya Valente respigado aqui


Vazaram-se as luas da savana
ossadas pálidas emigraram
dos corpos para o chão
ajoelharam-se os bois
exaustos de carregarem o sol

Escureceram as horas
nomeadas pela fome
extinguiu-se o sangue da terra
esvaiu-se o leite
num coágulo de saudade

Restam troncos
sustendo gemidos
mães oblíquas sonhando migalhas
mendigando crenças
para salvar os filhos já quase terrestres

Quem protege estes meninos
feitos de chuva que não veio?
Que casa lhes havemos de dar?

Amanhã
quando se entornarem os cântaros do céu
as aves voltarão a roçar a lua
e as cigarras de novo espalharão seu canto

Mas dos meninos
talhados a golpes de poeira
quantos restarão
para saudar o amanhecer dos frutos?

Mia Couto, Raiz do Orvalho, in Nunca Mais é Sábado - Antologia de Poesia Moçambicana, org. e prefácio de Nelson Saute, D. Quixote, p.502-503

03/04/10

A alma dos ricos

Concurso hípico, Lisboa, 1928 - Mário Novais, Biblioteca de Arte-F.C.G.


«Não é raro que as raparigas muito ricas escolham maridos pobres e que as limitem nas ambições. Chama-se a isso voltar ao pão seco, que pode constituir um desejo inspirador nas mulheres.
 O pai das duas meninas (havia também um rapaz, Eduardo) pertencia ainda à classe dos industriais de pano branco que se estendiam pelas margens do rio Ave com uma regular variedade de apresentação. Uns eram ricos com obstinação da consideração social, obtinham um título papalino e faziam-se solitários na sua terra onde o passado modesto lhes pesava como chumbo. Outros, como no caso de Amílcar da Barca, nunca rejeitavam nem os gostos nem as fraquezas, fiéis aos pratos tradicionais e ao pão de milho com chouriço. Educavam tão bem os filhos que se lhes tornavam estranhos.
Contudo o Amílcar da Barca teve o critério romanesco de se casar com uma Silva de Lanhoso, esta de casa apalaçada cujos telhados estavam uma ruína. A ruína dos telhados leva às vezes a alianças inesperadas.
As Silva Lanhoso eram de facto boas mulheres, mas completamente intragáveis quando se tratava de etiqueta. Tinham sempre um moço ao lado que levava o banquinho para os pés, na missa, e a escalfeta para o teatro. Chamavam-lhe o mandarete. Ninguém falava à mesa antes de a Silva se assoar estrondosamente depois de comer a sopa. Não era uma déspota; era um relógio de carrilhão.»

Agustina Bessa-Luís, «O Princípio da Incerteza - A Alma dos Ricos», Guimarães, p. 11

31/03/10

O beijo

O beijo é só uma palavra
escolhida
ao acaso. O que as tintas
encobrem e descobrem
e os pincéis revelam,
mas não nomeiam,
é a ordem
que se pressente
em todas
as nebulosas. Que sempre
a ordem precede
a desordem. E essa
é uma das leis
indeclináveis
do amor. A sua regra
de ouro, que não admite
excepções.

(do livro «As imagens e as legendas», a propósito de
«O beijo» de Gustav Klimt )


28/03/10

Há felizmente o estilo




- Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio... Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isto. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã, num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?... a nossa vida apresenta-se ali como algo... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é a maneira subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade e significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? De uma dessas tremendas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos?


Lembro-me de ti...

  Lembro-me de ti... Na escuridão profunda da memória, o teu olhar ilumina a estrada percorrida na história da minha vida. E sinto, em mim, ...