15/04/10

A palavra falada


William Shakespeare, Othelo,
James Earl Jones

Para MR, que no Prosimetron lembrou o Dia Mundial da Voz.

Histórias com galinhas

Gostaria de fazer um pequeno romance, uma apresentação e seu desdobramento, sem drama necessariamente, da maternidade das galinhas. Dos seus cuidados, passos, cacarejos, lições, calcar firme, de patas abertas e movimentos pausados, bicadas no chão apelativas ou demonstrativas, enquanto os tontos, mimosos 'pitos' doidejam inconscientes, transgressivos e entusiasmados, atordoados, neste mundo grande e novo que se lhes abre de meia dúzia de passos. As mães, sabedoras e educativas, não os largam, indiferentes aos estranhos.
Irene Lisboa, Solidão II, Editorial Presença, p.143


Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.
Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.
Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se pode­ria contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.
Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, pare­cia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:
— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!
Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:
— Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!
— Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.
Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.
Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.
Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.
Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.
Clarice Lispector, Laços de família - Uma galinha, Livros Cotovia, p.27-29

Cry me a river


13/04/10

Mediania

Demasiada lucidez é culpada num mundo de cegos, que com a cegueira se contemplam sem desastre de maior.
Agustina Bessa-Luís, Dicionário Imperfeito, Guimarães Editores, p.173

A característica própria de um homem corajoso é falar pouco e executar grandes acções. A característica de um homem de bom senso é falar pouco e dizer sempre coisas razoáveis.
Abade Dinouart, A arte de calar, Martins Fontes, p.14

«Balada para un loco»


canção: Horacio Ferrer e Astor Piazzolla, 
interpretada por Marina Cedro e Ricardo Urrutia;
ilustração: Josean Morlesín Mellado

12/04/10

Na Holanda o demónio está no meio das vacas

Hieronymus Bosch, Saint John the Baptist in the Wilderness, 1489-1505

Na Holanda  é assim. O Demónio está no meio das vacas: não escreve poemas, não pode exercer os dons. Pensa, perde o nome. Quem esperaria dele que trabalhasse a terra ou protegesse as alimárias?

Herberto Helder, Os passos em volta, Assírio e Alvim, (4ª ed. emendada), 1980, p.17

08/04/10

I really don't know life at all

Luz



É tão difícil viver com esta gente trazer-te
dentro de mim numa atenção discreta

esconder-te viva respirar
o ar pequeno e leve em que te moves.

Alberto Soares, Escrito para a noite, INCM, p.32

mais voir un ami pleurer...


Bien sûr il y a les guerres d'Irlande
Et les peuplades sans musique
Bien sûr tout ce manque de tendre
Et il n'y a plus d'Amérique
Bien sûr l'argent n'a pas d'odeur
Mais pas d'odeur vous monte au nez
Bien sûr on marche sur les fleurs
Mais mais voir un ami pleurer

Bien sûr il y a nos défaites
Et puis la mort qui est tout au bout
Le corps incline déjà la tête
Étonné d'être encore debout
Bien sûr les femmes infidèles
Et les oiseaux assassinés
Bien sûr nos coeurs perdent leurs ailes
Mais mais voir un ami pleurer

Bien sûr ces villes épuisées
Par ces enfants de cinquante ans
Notre impuissance à les aider
Et nos amours qui ont mal aux dents
Bien sûr le temps qui va trop vite
Ces métros remplis de noyés
La vérité qui nous évite
Mais mais voir un ami pleurer

Bien sûr nos miroirs sont intègres
Ni le courage d'être juif
Ni l'élégance d'être nègre
On se croit mèche on n'est que suif
Et tous ces hommes qui sont nos frères
Tellement qu'on n'est plus étonné
Que par amour ils nous lacèrent
Mais mais voir un ami pleurer.

06/04/10

Tudo nos é limitado pela estupidez de tudo

«Mas o Penedos. Era um político, querida, não sei se sabes o que isso é. Eu também não sei, mas vou ver se descubro enquanto te vou explicando. É a pessoa de quem mais mal se diz, depois dos árbitros de futebol. E logo tu a pensares que é pela mesma razão. E eu também, mas não sei ainda bem se é. Quem o pensa são talvez os curtos de mente, que é o que eu sou por enquanto.O político tem a missão de promover o bem comum, pressupõe-se. Mas o bem comum tem sempre muitos degraus e portanto pouca comunidade. Pressupõe-se isso e depois tiram-se as conclusões, que metem quase sempre um bocado de pancadaria. A missão de um político parece óbvia, mas nada é óbvio na vida, Mónica, imaginas o que há de difícil mesmo na soma de 2+2? mas eu estava a falar-te do político. É um jogador, uma das formas mais altas de. Joga ao bem comum e às vezes a sorte sai-lhe. É a altura de lhe dizerem tudo os que não jogaram ou a quem não saiu. O bem comum tem a forma de uma ficha para jogar. E sofre tanto de solidão. É um bebedor solitário, bebe política ao canto da consciência. Não joga para ganhar, e que jogador é que joga? joga só para chatear o destino, o que joga nele é a inquietação de o chatear. Como no capitalista, no general, no artista, mas o político é um jogador infeliz porque é raro deixarem-no jogar a tempo inteiro. Mas que é que nós somos a tempo inteiro? Nem o comer nem o beber nem o fornicar e assim. Tudo nos é limitado pela estupidez de tudo e a vida é o tudo desse tudo. Muito estúpida, minha querida.» 

Vergílio Ferreira, «Em nome da terra», Quetzal, p.225 - 226 

05/04/10

Protesto contra a lentidão das fontes

Malangatana Ngwenya Valente respigado aqui


Vazaram-se as luas da savana
ossadas pálidas emigraram
dos corpos para o chão
ajoelharam-se os bois
exaustos de carregarem o sol

Escureceram as horas
nomeadas pela fome
extinguiu-se o sangue da terra
esvaiu-se o leite
num coágulo de saudade

Restam troncos
sustendo gemidos
mães oblíquas sonhando migalhas
mendigando crenças
para salvar os filhos já quase terrestres

Quem protege estes meninos
feitos de chuva que não veio?
Que casa lhes havemos de dar?

Amanhã
quando se entornarem os cântaros do céu
as aves voltarão a roçar a lua
e as cigarras de novo espalharão seu canto

Mas dos meninos
talhados a golpes de poeira
quantos restarão
para saudar o amanhecer dos frutos?

Mia Couto, Raiz do Orvalho, in Nunca Mais é Sábado - Antologia de Poesia Moçambicana, org. e prefácio de Nelson Saute, D. Quixote, p.502-503

Lembro-me de ti...

  Lembro-me de ti... Na escuridão profunda da memória, o teu olhar ilumina a estrada percorrida na história da minha vida. E sinto, em mim, ...