21/08/09

Vim, para isto.

«Achei, enfim.
Estava folheando o diário de K.M. à procura de um pequeníssimo quadro, de que me lembrava e me parecia falso, benévolo, fantasista.
Apraz-me rectificá-lo.
São poucas as frases de lá. É um quadro verbal. Suponhamos que é isto:
Vim, diz ele.
E ela: sim?
Para isto... diz ele ainda, e puxa-a para si.
Ela, impressionada, sente-se desfalecer.
A minha rectificação pode vir a ter um ar tão gratuito como a fantasia de K.M., mas para mim é a minha... aquilo que sobre o facto admito ou penso. Enfim, anulo a precipitação dele e o pronto desfalecimento dela.
Ele chega, sobre as escadas. Nestas escadas não há espécie de mistério, nem tão pouco na terra nem na rua. Em parte nenhuma se manifesta, se respira aquela atmosfera pesada e excitante, que costuma animar a literatura irrealista.
Ele chega, ela espera-o. Espera-o sem feliz inquietação nem consolo. É uma mulher desconsolada. Pensa que ele não venha, que já não apareça; espera-o sempre sem confiança.
Mas para ele foi preparando uma infinidade de pequenas coisas graciosas, de que ele nunca se aperceberá. Deu-se a tarefas sucessivas, como as noivas. Espera-o com indiferença e tenacidade, é curioso! E despreza-o. Como o não conhece muito tem a impressão de que ele é caprichoso e também venal. Mas apesar da insegurança que sente, e da sua resistência, acha que ele representa muito para ela, que representa o mistério... É a luz e ela a borboleta cega.
Enfim, ele chega. O seu toque com os nós dos dedos à porta surpreende-a. Abre-lhe a porta e ele entra, mas de repente. Tão furtivamente, porquê? Ela pensava que lhe havia de ir abrir a porta em baixo (o fecho estava escangalhado), que não acenderia a luz, que ele a beijaria na escada... Tudo fatalidades, preconcebidas e agradáveis, como as do pequeno quadro de K.M.
Mas não! Ele entra rapidamente, embora sem intimidade, mostrando-se desde logo intruso. Depois apertam-se as mãos e sentam-se. A casa é pequena e faz frio. Os joelhos dele tocam os dela. Ela faz-lhe perguntas sem importância nenhuma, de amabilidade. Ele pouco fala. Vem de longe... Ri. É engraçado, realmente, um pouco estranho, um pouco esquivo. Ela sente-se desconcertada. Ele olha-a, diz-lhe coisas soltas sem pensar, e chega-se mais. Afinal viera... o coração dela mirra. Sente-se tão pouco desenvolta! Aceita tudo, desconsolada. Um abismo os separa, um abismo! E nem ele nada quer dela, mas beija-a. E beijando-a se excita.
Mas como se tinham beijado já? Nunca assim. Como se tinham beijado naquelas noites de Outono... sobretudo numa tão formosa, tão longa e tão estrelada, que ainda lhe parecia desgarrada, única? Nunca assim...Sem se importarem com o tempo! Com gosto perfeito ou imperfeito, sincero ou iludido, mas com uma sensação tão empolgante de desejo! Uma sensação tão rara de ânsia e de sofreguidão! Não se tinham dado um ao outro, ele negara-se, mas tinham-se doidamente beijado e desejado. Embriagado de enervamento e de cansaço.
E agora? Ele ali estava, mas como um desconhecido. Era um imoral, um céptico. Por fim ela põe-lhe levemente as mãos na cara. Fita-o muito de perto. Os olhos assim vistos fascinam. Parecem presos e mais largos, dominados... Os olhos dela, tristes, seguem o movimento vagaroso dos dele, a sua expressão ora paciente, ora maliciosa. Por fim uns e outros se cansam.
Mas se uma pequena palavra, um pequeníssimo acordo de intimidade se estabelecesse...
Ele sempre fala. E que lhe diz?
Umas coisas tão mesquinhas e tão calculadas! Tão inúteis, e mesmo tão vexatórias!
Ela, pisada, arrefecida, ouve-as.
Para aquilo viera... Há cobardia na sua atitude. Mas para quê ter vindo? Só para a ofender e humilhar?
O cálculo dos homens! As suas desculpas! Sempre e só o cálculo...
Aquela amargura que ela sentia não era nova. Não, não era. Ela conhecia-a, parecia-lhe que já desde a eternidade... Os homens abusavam dela, da sua real inocência.
E chorou. Caíram-lhe as lágrimas pela cara abaixo. Mas logo uma súbita secura a impassibilizou. Envergonhou-se de ser fraca.
E ele voltou a beijá-la. Talvez que a desculpar-se. Por fim beijaram-se com teima. E ele ficou.»
[Irene Lisboa, «Solidão», I volume, Editorial Presença, pág. 39-41]

17/08/09

Escuridão

«Sim, havia profundeza nela. Mas ninguém encontraria nada se descesse nas suas profundezas - senão a própria profundeza, como na escuridão se acha a escuridão. É possível que, se alguém prosseguisse mais, encontrasse, depois de andar léguas nas trevas, um indício de caminho, guiado talvez por um bater de asas, por algum rastro de bicho. E - de repente - a floresta.» [Clarice Lispector, «Felicidade Clandestina»]

13/08/09

A causa depois do efeito

«Sim, sim, Mónica. A causa depois do efeito. A minha tese é esta, minha querida - nós trazemos na alma uma bomba e o problema está em alguém fazer lume para a rebentar. (...) Alguns têm a sorte ou a desgraça de alguém fazer lume para rebentarem o que são, ver-se o que estava por baixo do que estava por cima. Mas outros vão para a cova na ignorância. Às vezes fazem ensaios porque a pressão interior é muito forte. Ou passam a vida à espera de um sinal, um indício elucidativo. Ou passam-na sem saberem que trazem a bomba na alma que às vezes ainda rebenta, mesmo já no cemitério.» [Vergílio Ferreira, «Em nome da terra», Quetzal, pág.187]

08/08/09

Amar no absoluto

«E devagar, ao centro de convergência de toda a bruta inquietação, rígida a procura do teu abismo interior. Refreio o ímpeto, quero entrar com a consciência difícil do que procuro, o impossível do teu ser. Rebento no limite de reter-me no sofrimento. Mas quero entender, entender. O modo único de nada me escapar ao prazer de ti. Do mistério irritante do que acontece no amar-te agora por sobre quanto te amei. Entender. Amar-te na conglomeração de todas as vezes e formas e impossível em que te amei. Mónica, minha querida. Minha doença insuportável. Porque o teu corpo não é só o teu corpo. Não é isso, não é isso. É entrar em ti, e a tua pessoa estar lá, seres tu ainda no íntimo de te tocar e estares aí como no teu riso, na tua presença. Seres tu ainda quase reconhecível como se não soubesse que eras tu e entrar em ti e reconhecer-te como se aí fosses reconhecível. Preciso de entender, não te vou agora amar à toa. Seres por dentro única como nas impressões digitais. Saber que és tu, mesmo sendo cego e surdo. Entrar em ti e tu estares toda lá dentro como estás por fora. Tocar o intransmissível de ti, reconhecer que és tu, inconfundível, no igual do teu íntimo ao de toda a mulher. Porque tu és tão diferente. No riso no ar na voz, na totalidade do teu corpo. E sentir que isso tudo é lá também esse tudo. Diferente na sua igualdade. Entrar em ti e ir reconhecendo pouco a pouco no meu entrar a mulher que amo até à estupidez. Reconhecer encontrar dentro o que amei fora. Nunca te amei toda, vou-te amar o que sempre faltou. Nunca te amei tudo, aproveitei sempre uma fatia de te amar. O teu olhar, o teu riso, a exemplaridade do teu corpo, o seu espectáculo, o encantamento às vezes, o teu andar, o prazer rápido, o prazer trabalhado para te submeter a tê-lo. Coisas assim avulsas. Vou-te amar agora, vou-te amar no absoluto. Amar-te no prazer e rebentar.» [Vergílio Ferreira, «Em nome da terra», Quetzal, pág.143]

16/06/09

Paixão

«"Esta" - se disse o homem ajoelhado como antes de ir para a guerra - "esta é a minha prece de possesso. Estou conhecendo o inferno da paixão. Não sei que nome dar ao que me toma, ou ao que estou com voracidade tomando, senão o de paixão. O que é isso que é tão violento que me faz pedir clemência a mim mesmo? É a vontade de destruir, como se para este momento de destruir eu tivesse nascido. Momento que virá ou não, a minha escolha depende de eu poder ou não me ouvir. Deus ouve, mas eu me ouvirei? A força da destruição ainda se contém um instante em mim. Não posso destruir ninguém ou nada, pois a piedade me é tão forte como a ira; então eu quero destruir a mim, que sou fonte dessa paixão. Não quero pedir a Deus que me aplaque, amo tanto a Deus que tenho medo de tocar nele com meu pedido, meu pedido queima, minha própria prece é perigosa de tão ardente, e poderia destruir em mim a imagem de Deus, que ainda quero salvar em mim."» LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999

Lembro-me de ti...

  Lembro-me de ti... Na escuridão profunda da memória, o teu olhar ilumina a estrada percorrida na história da minha vida. E sinto, em mim, ...