19/03/10

«Lembro-me da Maria...


«Vi-a pela última vez, oh! há já tanto tempo! estava eu a banhos em Santo Amaro. Porém, desses banhos sujos e pobres nem vale a pena falar. Apetece-me, sim, recompor a minha conversa com a Maria. Não digo que tintim por tintim mas, enfim, recompô-la.
A Maria levava um menino, o seu menino ao colo.
Maria, Maria, quem te viu e quem te vê... pensei, mas sem lho dizer.
Era uma tarde quase morta e os lugares tristes e feios, pesados; não como estes do lado de cá, dobrado São Tiago. Povos miseráveis, do fim do mundo, currais humanos e cerros agrestes, onde os vilões ricos vão caçar no tempo.
Maria!
Admiro-me de a encontrar, mas porquê, se ela daqui é, se estou à vista do seu povo?
Não te esperava, lhe digo.
De menino ao colo, meio dormente, ela sorri-me. Mas com que beiços e com que olhos? Oh! nanja com os seus antigos. Onde irão bem eles e os seus perdidos jeitos?
Que fazes, rapariga? Deixei de te ver...
Não tornei lá, nada não...
Então?
Agora guardo um velho, sabe a senhora, fico de vela a ele, e toda a noite, ergo-o e deito-o por mor de... a senhora bem me entende, como já não tenho que perder...
E o teu menino?
Muito 'costipadinho'! Passa a noite comigo, enrolado nuns farrapos. Eu não me deito.
E o pai dele?
Ó!
A Maria vira a cara, retraída, repetindo-me: ó! ó!
Porém o narizinho curvo da criança, como um biquinho de papagaio, é perfeitamente o do lojista seu pai. Que o repudia, necessariamente. Ele, a mulher e os irmãos e cunhadas de cada um dos lados.
A Maria é de quem na quis e de quem na quer! declarava em baixo duro a senhora Teresinha, sua patroa, P!... De noite recebia o meu na cama, dijem, e de dia, e de dia? quem no sabe, lá por onde ela andava?
E a Maria, ali parada na minha frente, desluzida como a própria hora em que a surpreendo, naquela passagem escura e afogada de uma canadita da serra, pedregosa, húmida, está esperando a minha esmola... Ah! Maria, Maria, quem te viu e quem te vê!
O seu menino triste, muito entrapado, mas com o biquinho de papagaio visível, só me lembra o pai.
Estás marcado, penso. Mas não lhe quero mal, porque lhe havia eu de querer mal? Por mais que te reneguem estás marcado! E o lojista seu pai aparece-me. Pesadão, barrigudo, de coses caídos, de alpergatas desatadas, de olhar baço, sem freguesia, encostado ao balcão sobre um tapete de papéis, trapos e fiapos de lã churra. Pai daquele anjinho pária... desfrutador daquela mulher que foi uma aurora... depressa apagada pelo desprezo de todos e pela fome.
Ele não te dá nada? pergunto-lhe.
Ó! fui-me lá a chorar, pró quê? atiraram-me c'uma  manta velha e más palavras, e que se eu tornasse...
Chamavam a guarda?
É como diz.
Adeus, Maria, adeus.
Que sítios, que pobreza e que aridez! Fragas, mato, rijos giestais... São Tiago à vista, altaneiro, e por trás dele, serra dentro, os grandes maninhos e os baldios despovoados, às corcovas, imensos, onde os rios nascem e uivam os lobos...
Em que buraco se há-de meter o coração de quem tudo isto vê? Um panorama aflitivo e augusto, esmagador, e uma miséria rasteira.
O menino morre e a mãe dele, mirrada, já feia, é uma candeia a apagar-se também.
E estaria escrito, porque tudo assim aconteceu. Foi-se o seu menino, mais um anjinho para o céu, sem que ninguém quase disso desse fé, e após ele a mãe: um alívio para a terra.
Ó serra impiedosa!
A Maria ia à Guarda, uma lonjura, talvez esmolar. De menino sobraçado. E também fazer um pneumotórax. Um pneumotórax!
As cidades, até mesmo as serrenhas, têm os seus luxos e contemplações com os pobres que apanham a tuberculose.» 

Irene Lisboa, «Solidão II»,  Editorial Presença, p.132-134

A monarchia

Andam a dizer mal da Monarchia,
Mas sem razão, fallemos a verdade;
Porque aos bons ninguém dá mais garantia
Nem pune aos máos com mais severidade.

Nunca paixões de certa qualidade
Prevaleceram contra o que cumpria,
Nem consta que inspirasse a iniquidade
Despacho, lei, decreto ou portaria!

Há setecentos annos simplesmente
Que este systema nos governa, e vêde
Commercio, industria, tudo florescente.

Os caminhos de ferro é uma rêde!
E quanto a instrucção, toda esta gente
Faz riscos de carvão n'uma parede.

João de Deus, «Campo de Flores - Satyras e Epigramas»,
II vol., Livraria Bertrand, p.11   

17/03/10

Dizível e Indizível


«A crença num mundo exterior independente do sujeito perceptivo é a base de toda a ciência natural. Visto, no entanto, que a percepção sensorial só nos dá informação acerca desse mundo exterior ou «realidade física» de forma indirecta, só podemos apreender este último por meios especulativos. Daqui resulta que as nossas noções de realidade física nunca podem ser definitivas. Devemos estar sempre prontos para alterar essas noções - que é o mesmo que dizer, a base axiomática da física - para fazer justiça a factos percepcionados da maneira logicamente mais perfeita».  
Albert Einstein

«Embora o Tathagata, no seu ensinamento, recorra constantemente a concepções e ideias sobre elas, os discípulos não devem perder de vista o carácter irreal de todas essas concepções e ideias. Devem ter presente que o Tathagata, ao servir-se delas para explicar o Dharma, usa-as à semelhança de uma jangada utilizada para atravessar um rio. Como a jangada deixa de ter utilidade depois de atravessado o rio, deve ser descartada. Da mesma forma, estas concepções arbitrárias das coisas e acerca das coisas devem ser totalmente abandonadas à medida que o indivíduo atinge a iluminação.»
Buda

[Thomas J. Macfarlane, «Einstein e Buda - Palavras Comuns», Estrela Polar, p.86]

16/03/10

O mar


Claude Debussy, «La mer»
The Cleveland Orchestra, maestro Pierre Boulez

Um instante de nudez perfeita




Escrevo contra o vento,
frente ao mar.
Volúveis,
as mãos sondam
a salina intimidade das águas.

***

Há um instante em que a memória é estreita
para conter o mar, o sal, os navios,
a penumbra branca das gaivotas.

Um instante de nudez perfeita.


Albano Martins, «Assim são as algas», Campo das Letras, p.63-64.

15/03/10

The wind in my heart, the dust in my head


Peter Gabriel, album "Scratch My Back",
faixa "Listening Wind", original dos Talking Heads

Aqui todos são loucos


O gato sorriu quando viu Alice. Parecia bem disposto, mas , mesmo assim, tinha umas grandes unhas e muitos dentes, por isso era melhor tratá-lo com respeito.
- Gatinho - chamou Alice, bastante receosa, pois não estava certa que ele gostasse de ser tratado assim. Mas o Gato sorriu ainda mais. «Até agora não se zangou», pensou Alice. E continuou: - Podes dizer-me, por favor, como hei-de sair daqui?
- Isso depende muito do sítio para onde quiseres ir - respondeu o Gato.
- Não me interessa muito para onde...- disse Alice.
- Nesse caso, podes ir por um lado qualquer - respondeu o Gato.
- Desde que vá ter a qualquer lado - acrescentou Alice, em jeito de explicação.
- Oh, para que isso aconteça, tens de caminhar muito - disse o Gato.
Alice achou que isto era inegável e por isso tentou outra pergunta:
- Que espécie de gente vive por aqui?
- Naquela direcção - disse o Gato, levantando a pata direita - vive um Chapeleiro, e naquela, uma Lebre de Março. Vai visitar o que quiseres, são ambos loucos.
- Mas eu não quero estar ao pé de gente louca - respondeu Alice.
- Oh, não podes evitá-lo - disse o Gato. - Aqui todos são loucos. Eu sou louco. Tu és louca.
- Como sabes que eu sou louca? - perguntou Alice.
- Tens de ser, de outro modo não estarias aqui.
Alice não achava que isso provasse coisa nenhuma, mas continuou:
- E como sabes que és louco?
- Para começar, um cão não é louco. Aceitas isso? - perguntou o Gato.
- Creio que sim - respondeu Alice.
- Bem, nesse caso... - continuou o Gato. - Um cão rosna quando está zangado e abana o rabo quando está satisfeito. Ora eu rosno quando estou satisfeito e abano o rabo quando estou zangado. Por isso sou louco. 

Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas, Leya, SA, p.62-64.

14/03/10

O gosto da verdade


Sobretudo não acredite nos seus amigos quando lhe pedirem que seja sincero para com eles. Esperam apenas que os mantenha na boa ideia que fazem de si próprios, fornecendo-lhes uma certeza suplementar que extrairão da sua promessa de sinceridade. Como é que a sinceridade poderá ser uma condição da amizade? O gosto da verdade a todo o custo é uma paixão que nada poupa e a que nada resiste. É um vício, por vezes um conforto ou um egoísmo.

Albert Camus, A Queda, Editora Livros do Brasil, p.65

12/03/10

Epitáfios

Aqui fulano jaz. Foi pouca cousa,
Cansado de mandriar, aqui repousa.

*

Como todos, entrei neste universo
Sem conhecer os homens.
Co'eles vivi, tratei. Não fui ditoso,
Que a necessária bússola
Com que os inimigos mares se navegam
Nunca a tomei comigo.
Cuidei que a boa fé, que o termo ingénuo
Me atalhassem naufrágios.
Vate (e louvado) fui, mas sempre do óptimo
Modelo venusino,
Tão distante, quanto hoje, de mim distam
Vates de anãs nerinas.
Nem da Academia fui, que não me acharam
Os tais sabichões digno
Dessas honras que tanto esperdiçaram
Seus membros que ora calo.
Hoje, que entro a avistar escolhos pérfidos
Cobertos de água mansa
Nesse oceano da Corte sem subúrbios,
Lhes dou o adeus eterno.
Por três homens que vi dignos de estima
Vi mil malvados Judas,
Avarentos, Filautes, vis Sejanos,
Cavernas de calúnia!
Sem pesar me despeço; e, se o previra,
Regeitara entrar no Orbe.

P.e Francisco Manuel do Nascimento (1734-1819), Poesia do Século XVIII - Antologia, Colecção Avelar, Série C - Autores Nacionais, n.º 3, Dir. literária de Júlio Martins e Óscar Lopes, p.51 e 56



[ Escreveu sob o pseudónimo Filinto Elísio. Filho ilegítimo de um fragateiro e de uma varina, fugiu para França, em circunstâncias romanescas, à perseguição dos esbirros da Inquisição, a que o denunciara a própria mãe por conselho do confessor. Vive no exílio do que escreve e de lições de português. Lamartine foi seu discípulo e consagrou-lhe um poema; dava-se com outros notáveis exilados portugueses. É vigoroso prosador e crítico. Testemunha presencial da Revolução Francesa, cujos ideólogos admira, a sua poesia só deixa o recorte horaciano quando irrompe a sua indignação contra as camadas dirigentes em Portugal ou a dor da sua miséria, ou então quando ele se revela o filho da varina e do fragateiro, educado ao ar livre da Ribeira das Naus.]  

11/03/10

Mas crise, crise, qual crise?



Eu avançava dentro de mim. Via o mundo em guerra e desconhecia o que era a guerra, excepto na indigestão de guerras que estudava nos livros de História. Tudo guerras, as páginas e páginas de compêndios que me obrigavam a engolir relatavam umas com cem anos, outras com trinta, batalhas, cercos, tratados, pilhagens, nomes de heróis, e finalmente vinha a paz. Eu assistia pela primeira vez na vida, cá de longe, aos reflexos da guerra, coisa que se passava para lá dos Pirenéus, em avançadas, em destruições totais, carnificinas de aldeias, cidades, um mundo que me chegava nas primeiras páginas dos jornais, no noticiário que relatava as campanhas pelos vários campos da Europa. Ia aprendendo geografia. Um vazio enorme apoderava-se de mim no momento preciso em que escalava a ladeira dos anos. O pneu furado deixava sair tudo o que de bom e mau lá tinha dentro. Aquilo a que mais tarde chamariam um 'washbrain'. Esvaziara-me o esforço desconexo de tanto exame e de tanto trânsito para ser homem. Nunca pensei o que era ser homem, desconhecia que um homem só é digno quando aceita as consequências das suas acções, desconhecia os esforços empregados para se fingir que se mantém um zelo permanente pelas instituições. E tal a inconsciência do nosso estado de espírito, que estou a ver o actor António Silva, em representação no teatro Variedades, pleno de guerra, notícias aterradoras, ele, no meio da confusão do palco, em que toda a gente perguntava as últimas notícias, onde se relatavam casos que só podiam ser salvos pela Cruz Vermelha. No encontro dessas conversas, o António Silva, como vindo das cavernas, olha para aqueles tipos que discutiam e, muito admirado, diz: "Mas guerra, guerra, qual guerra?" 

Ruben A., «O Mundo à Minha Procura», vol. II, Assírio & Alvim, p.121-122

08/03/10

As mulheres


Não creio que as mulheres tenham problemas de solidão. Estão preparadas para a solidão e, em geral, para toda a espécie de sofrimento; a natureza dotou-as com singulares poderes de resistência, o que os doutos alquimistas diziam ser humor frio e incapaz de maturidade intelectual. Acho mesmo que a solidão é um estado natural da mulher; e por isso todos os movimentos ascéticos que envolviam retiro e culto da experiência espiritual, desde as vestais de Roma até às Damas do Amor Cortês, na Provença, partiam dum sentimento feminino muito acentuado. Os homens não encaram bem esse protótipo de mulher espiritual, porque ele é o único que recria a independência feminina depois do primeiro Éden. E diz-se primeiro Éden porque, segundo as Escrituras, houve, antes de Eva, uma mulher pura, inteligente e igual ao homem, de grande condição metafísica, porém cruel e sumamente poderosa. Chamava-se Lilith. Em suma, o mito da mulher fatal, que o homem teme e, ao mesmo tempo, pretende conhecer como sua verdadeira metade.

O dilema é este: nós as mulheres, somos prosaicas, sobretudo quando somos naturais. É próprio daqueles que são delicados e frágeis o serem terra-a-terra, porque isso lhes dá a impressão de estarem mais protegidos. A realidade protege mais do que os sonhos, do que as coisas imaginárias.

Agustina Bessa-Luís, Dicionário Imperfeito, Guimarães Editores, p. 192-193 e 195-196

Lembro-me de ti...

  Lembro-me de ti... Na escuridão profunda da memória, o teu olhar ilumina a estrada percorrida na história da minha vida. E sinto, em mim, ...