28/05/11

O primeiro

Relembro-nos ocultos sob a pérgula de glicínias.
A luz pingava suspensa em cachos de lilás.
Sentíamo-nos submersos num líquido turquesa
onde os gestos morosos subaquáticos pareciam
brancos e nus.
A aproximação dos lábios
teve a lentidão dos moluscos marinhos.
O teu braço cingiu-me a nuca,
as minhas mãos perderam-se no infinito
e o mundo parou assim...

Só há um beijo válido: o primeiro.
É puro, de mármore, eterno.
Merece uma estátua no meio do jardim.

Paulo Assim, Celulose, Lugar da palavra, p.19


26/05/11

Depois da noite

Olhos de maio rios muito claros
trazendo soltos seixos de um cinzento
que em breve se mistura de silêncio
brando. É tarde pra movê-los

do meu rosto ao teu que trouxe dedos
desprendê-lo da minha boca ébria
que a dizer-te se liberta a pouco e pouco
esta alegria. Fosse haver

depois da noite um dia sucessivo
não feito mais do que se permitir
ser tudo para nós e não mover-se
nunca o sentimento de deixar-te

sendo completo porque não termina
todo o amor que fica por fazer. 

Alberto Soares, Escrito para a noite, INCM, p.44



22/05/11

Condição de mulher



Recordava como, no tempo em que era homem, exigia das mulheres que fossem obedientes, castas, perfumadas e primorosamente ataviadas. «Agora vou ter que pagar na minha própria carne esses desejos», reflectiu; «porque as mulheres não são ( a ajuizar pela minha breve experiência de pertença ao sexo) obedientes, castas, perfumadas e primorosamente ataviadas por natureza. Só podem alcançar essas graças, sem as quais não gozam nenhum dos prazeres da vida, mediante a mais enfadonha disciplina. Há o penteado», pensou, «que só por si me vai roubar cada manhã uma hora; há o ver-se ao espelho, mais uma hora; há o espartilho e as rendas; o banho e o pó-de -arroz; há o mudar de vestido, trocando o cetim pela renda e a renda pela seda; há o ser casta todos os dias do ano...». Aqui bateu o pé com impaciência, exibindo uma ou duas polegadas da perna. Um marinheiro empoleirado no mastro, que por acaso olhou para baixo neste instante, sobressaltou-se tão violentamente que perdeu o pé e só por um triz se salvou. «Se ver os meus tornozelos pode custar a vida a uma honesta criatura que com certeza tem mulher e filhos para sustentar, manda a mais elementar humanidade que os traga sempre cobertos», pensou Orlando. As pernas eram, porém, um dos seus maiores encantos. E pôs-se a pensar na bizarra situação a que se chegou quando a mulher é obrigada a cobrir os seus encantos para que um marinheiro se não despenhe do topo de um mastro. «Que os leve a peste!», disse, dando-se conta, pela primeira vez, daquilo que noutras circunstâncias teria aprendido desde criança, ou seja, das sacrossantas responsabilidades da condição de mulher. 

Virginia Woolf, Orlando - uma biografia, Relógio d'Água Editores, p.111-112;  imagem: Dino Valls, Catexis

21/05/11

O cinismo

O cinismo é a arte de ver as coisas como elas são, 
de preferência a como deveriam ser.

Oscar Wilde, Aforismos, Contexto, p.79


15/05/11

E tocará esse piano

Eu não voltarei. E a noite
morna, serena, calada,
adormecerá tudo, sob
sua lua solitária.


Meu corpo estará ausente,
e pela janela alta
entrará a brisa fresca
a perguntar por minha alma.

Ignoro se alguém me aguarda
de ausência tão prolongada,
ou beija a minha lembrança
entre carícias e lágrimas.

Mas haverá estrelas, flores
e suspiros e esperanças,
e amor nas alamedas,
sob a sombra das ramagens.

E tocará esse piano
como nesta noite plácida,
não havendo quem o escute,
a pensar, nesta varanda.

Juan Ramón Jimenez, Antologia Poética, trad. José Bento,
Relógio D'Água, p.31-32


09/05/11

Escrito no muro

Procura a maravilha.

Onde a luz coalha
e cessa o exílio.

Nos ombros, no dorso,
nos flancos suados.

Onde um beijo sabe
a barcos e bruma.

Ou a sombra espessa.

Na laranja aberta
à língua do vento.

No brilho redondo
e jovem dos joelhos.

Na noite inclinada
de melancolia.

Procura.

Procura a maravilha.

Eugénio de Andrade, Obscuro Domínio, Limiar, p.16-17




25/04/11

O gesto criador



Pranto pelo dia de hoje


Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Que não podem sequer ser bem descritas.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Antologia,
Círculo de Poesia - Moraes Editores, p.191 

O tempo

O tempo não deseja ser feliz.
Por isso nós o seguimos.

António Osório, Antologia Poética, Quetzal Editores, p.187


19/04/11

Afinidades electivas

No mundo ordenado de uma Europa onde a burguesia procurava o apogeu (que afinal não veio) Napoleão podia dizer, com tranquilidade e ressonância, que a Tragédia era a Política.
Os tempos passaram e essa ordem de civilização, frustrada no Velho Mundo, reagiu e alcançou apreciável plenitude nos Estados Unidos da América mas, logo em seguida, entrou em fase de decadência, ou, pelo menos, de grave conflito. A Tragédia transbordou os cenáculos da Política e derramou-se pelo asfalto da própria Linguagem dos homens. De certa forma foi um retorno às origens.
É a Linguagem que melhor se percebe, hoje, o caráter quase irremível do caos. Ao falar, ao pretender comunicar-se com o seu companheiro revolvente no drama pintado tanto por Tocqueville quanto por Orwell, a humanidade consegue apenas balbuciar quando quer falar de tudo e em especial da Morte, quando outrora achara meios de lhe emprestar um verdadeiro esplendor(...)
Somos os herdeiros de Aristóteles, o primeiro a - na Poética - reduzir a Tragédia ao efeito que produz no espetador. Mas herdeiros perdidos num deserto.
Parece definitivamente morta a era em que a civilização ocidental, ébria por um poder verbal que conseguia a suprema arte de distinguir entre o 'Ser' e o 'Não Ser', viveu a ilusão generosa do humanismo, grega, primeiro, cristã depois.
Talvez pressentindo o que viria a suceder, Shakespeare pediu às noites de verão o que o racionalismo não nos conseguia dar e entregou a Lear a chave de um 'Dizer' já desesperado e a Hamlet a incumbência de nos lembrar o 'Ser' ou 'Não Ser'. Já era, no fundo, um recurso terrível à Loucura como antítese da lucidez com que a Grécia tratou Édipo e este dos seus (nossos) problemas.
Tendo confiado a Tragédia à Política julgando que ela não mais retornaria à Linguagem, o homem ocidental entrou no deserto.
Hoje, incapaz de falar, de 'destragedisar' a Tragédia pela sua expressão, o homem ocidental parece resignado a esperar as patas dos cavalos mongóis.
Para depois - quem sabe? - recomeçar tudo de novo.

Victor Cunha Rêgo, O Trágico, in Liberdade, O Independente, p.173 a 175



Com envoi ao PROSIMETRON, neste terceiro aniversário. Que tenha uma vida longa!

A utilidade do poder - 2




Os homens que haviam sido promovidos a Governo Provisório da República, uma inacreditável colecção de mediocridades glorificadas, representavam várias tendências dentro do PRP (Partido Republicano Português), tinham opiniões diferentes sobre o que devia ser o novo regime e nem sequer especialmente se estimavam. (...) Escolhidos mais pelo que os separava do que pelo que os unia, os ministros não tardaram a entrar em violento conflito. Pior ainda, mesmo nas questões mais essenciais, agiram independentemente, sem o consentimento geral e até sem consulta prévia. No entanto, em Outubro de 1910, todos concordaram na urgente necessidade de afirmar o poder do Estado contra a Carbonária. Machado Santos queria que a Sociedade continuasse activa como supremo guia das autoridades do Estado e do Partido. Conforme ingenuamente se dava ao trabalho de explicar, os carbonários não eram republicanos vulgares, eram «alguma coisa mais»: eram os «fundadores da República» e, nessa qualidade, achavam-se no direito e no dever de velar pelos ideais revolucionários. (...)
Ao princípio os notáveis do PRP pensaram em comprar Machado Santos e o resto da Alta venda com empregos, promoções, prestígio, se não mesmo com coisas menos subtis, como pensões vitalícias e dinheiro. Um ministro especialmente optimista chegou até a oferecer a Machado Santos o governo de Moçâmedes. Porém, nem ele nem a maioria dos chefes da Carbonária mostraram particular propensão para o suicídio político, e foi preciso descobrir métodos mais eficazes para os liquidar. Por sorte, só o Governo Provisório estava em posição de recompensar os militantes da CP e, como toda a gente que de perto ou de longe participara no movimento republicano, os carbonários queriam empregos. O frenesim colectivo era tal que as comissões paroquiais de Lisboa vieram pedir humildemente nos jornais aos bandos de pretendentes que, por favor, deixassem os senhores ministros trabalhar. Camacho, por exemplo, queixava-se amargamente das alcateias de aspirantes a funcionários públicos que o perseguiam pelas ruas. Nem no café, parece, o largavam. Ora, sem posição oficial, Machado Santos apenas podia transmitir os pedidos dos carbonários aos ministros competentes e juntar a sua voz ao coro geral dos suplicantes. O GP e o Directório perceberam imediatamente a oportunidade que isto lhes abria. Embora não negassem que os «heróis de Outubro» mereciam o prémio dos seus longos «serviços» e santos «sacrifícios», terminantemente se recusaram a aceitar as recomendações da Alta Venda como as únicas ou sequer as mais seguras credencias de «heroísmo». Assim, não tardou que Lisboa sofresse de inesperada invasão de hordas de «heróis». «Comissões revolucionárias» improvisadas, cujo papel na revolução fora pouco importante, obscuro, se não imaginário, começaram aplicadamente a passar certificados de «heroísmo». A imprensa publicava carta após carta atestando as proezas, a bravura e a dedicação de ilustres desconhecidos que exigiam e frequentemente recebiam provas palpáveis da gratidão da Pátria. O número dos que se declararam presentes na Rotunda na crítica manhã de 4 de Outubro cresceu com tanta rapidez que em Novembro já se dizia que, se essas abnegadas revelações não parassem depressa, ainda se acabaria por descobrir que Lisboa inteira lá estivera, excepto talvez Machado Santos.

Vasco Pulido Valente
, O Poder e o Povo, Aletheia Editores, p. 206-208


16/04/11

Verdades e suspiros

Faço todos os esforços possíveis para ser seco. Quero impor silêncio ao meu coração, que crê ter muito a dizer. Temo escrever suspiros, em vez de anotar verdades.

Stendhal, Do Amor, Editorial Presença, p.47



Lembro-me de ti...

  Lembro-me de ti... Na escuridão profunda da memória, o teu olhar ilumina a estrada percorrida na história da minha vida. E sinto, em mim, ...