Caim

(...)De Abel sabe-se que era pastor. O seu irmão Caim era agricultor e oferecia a Deus em sacrifício uma parte da colheita. Abel quis também oferecer alguma coisa: «Também ele», "gam hu" diz a narração. E não tendo primícias, ofereceu os primogénitos do seu gado. É a primeira vez, e por isso Deus volta-se para esta nova espécie de sacrifício. As traduções aqui falam duma preferência, de um tratamento de favor da parte de Deus. Mas a escritura hebraica usa aqui um verbo bastante raro, "sha'à" (15 casos), que estará duas vezes na boca de Job quando, extenuado pelo sofrimento, grita a Deus: «Como não te afastas de mim, e nem ao menos permites que engula a minha saliva?» (Job 7,19) E ainda mais um igual convite a deixar em paz o homem, a não fincar nele o olhar: «Desvia-te dele, para que repouse» (Job 14,6). E também David no salmo 39 pede com um verbo categórico a Deus: «Desvia-te de mim para que eu me restabeleça» (Sl 38,14). Não é um olhar de favor o de Deus sobre Abel, mas Caim interpreta-o assim porque a oferta atraiu a atenção de Deus, afastando-se das primícias por ele trazidas. E Deus toma consciência daquele sentimento furioso e procura avisar Caim de que nele existe um mal que está a crescer como uma inundação: chama àquela febre "teshuká", uma enchente de águas que transbordam.
Mas aquele irmão Abel tirou-lhe algo mais, intrometendo-se entre ele e Deus. Matá-lo será um acto de puríssima inveja. Porque é esta desde o início a relação entre Deus e o ser humano: de amor exclusivo e recíproco, ao ponto de escrever nas palavras do Sinai que Deus é "El kanná", Deus invejoso que não admite infidelidade.
A esta paixão sucumbe, Abel, ignorante, que no fundo imitava Caim nas ofertas, porque desejava a mesma coisa: ser também ele apaixonadamente amado por Deus.




«que diabo de deus é este que, para enaltecer abel, despreza caim
José Saramago

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