«Extraordinário como as coisas, até as mais simples, podem comunicar felicidade ou tristeza. Uma vivência longínqua fica-lhes colada para sempre e basta, assim, a sua presença para no-la fazer reviver. Era em Angola e eu estava de visita àquela família.
D. Eugénia, a dona da casa, pusera a mesa para o pequeno-almoço: o pão, a manteiga, os bules do café e do leite. Tudo comum, conhecido de cada manhã, excepto a xícara. Esta, especial, com uma paisagem no bojo e um pires alongado em forma de palmatória onde caberiam torradas ou uma fatia de bolo.
E senti uma pancada na porta fechada das minhas lembranças.
A casa paterna abria-se diante de mim, adolescente, e a mãe, pálida, na cama, tomava o leite pela xícara de louça fina, tão fina que se via a bebida descendo lentamente.
Dias infelizes esses em que a mãe estava doente, mas aquela recordação era boa até às lágrimas: as cortinas de renda no quarto sombrio, o cheiro doce do chá de tília, o anoitecer penoso como dor física, as palavras que se diziam e que soavam sempre absurdas.
Na cabeceira da cama, um rosário de madeira, tão comprido que se diria de frade franciscano, e no canto sobre o qual a porta abria, a mancha clara do oleado novo a remendar o antigo que se tinha rompido.
Agora, D. Eugénia admoestava as crianças, contava de planos caseiros, de desavenças com os criados.
Fora, a manhã ia alta. Percebia-se o calor por entre as persianas semi-cerradas.
De novo a casa paterna. (A xícara, a única coisa viva ali, e as pessoas meros objectos decorativos.) Ser-me-ia fácil aspirar o aroma das maçãs camoesas no armário da roupa, repetir as orações que nesse tempo rezava ao deitar.
No espelho da cómoda, grande, oval, a minha imagem aparecia nítida e esplêndida. Nunca mais depois encontrara espelhos iguais aos de casa. Sem defeito, aqueles. As feições das pessoas reflectiam-se lá distintamente marcadas. Os espelhos das casas dos outros, os espelhos das pensões, os espelhos dos «lares», eram sem categoria todos, e a gente surgia neles miseravelmente vulgar.
Ainda a figura da mãe: face definhada, cabelo grisalho, o corpo recostado em almofadas. Deus meu, como parecia velha! Tivera essa surpresa uma tarde, ao olhar para o espelho da cómoda defronte do leito. A morte insinuava-se através do cristal.
Um dos meninos pediu o urso amarelo. A dona de casa chamou o negro que veio da cozinha a limpar as mãos ao avental.
Numa tacinha de vidro, na mesa, bolachas cobertas de açúcar areado.
E a intimidade crescia como massa de pão a levedar.
Na casa de hóspedes onde vivia, tinha eu o mesmo café com leite em bules de metal, porém a chávena, de faiança branca, bordos grossos, letras azuis a marcar.
Que importava que aquela terra fosse argilosa e quente, que as pessoas em redor me não pertencessem nem pelo sangue nem pela tradição, se de repente me encontrava na porcelana da xícara?
Os dedos tremiam-me.
Para lá da vida estava a minha gente. Os que amara tinham a pouco e pouco atravessado o espelho. Sabia que não eram mais meus, mas podia ver-lhes a imagem, lembrava-os, acreditava neles. Por vezes possuía-os em sonhos - uma espécie de revelação do mundo da morte em que cada um se erguia solene, indiferente, superior.
O centro da mesa com flores artificiais esta prestes a ser derrubado por um dos pequenos. A mãe ralhou. A criança foi acabar a refeição na cozinha.
Lá fora, o pregão da Notícia. Passos na escada. D. Eugénia interrompeu a torrada. O jornal de domingo trazia-lhe sempre certa excitação.
Outros passos. Estes ritmados, firmes. Fazia escuro e vinham da rua. Ao entrar o corredor o seu som enfraquecia.
Nas paredes do quarto a chama da lamparina era tonta, dançando.
Murmúrio de vozes. A doente suspirava.
Ele trazia consigo o hálito da noite, a gabardina rangia no corpo alto, o rosto vincava-se de preocupação.
Mas o afastar dos passos isso é que jamais poderia ser esquecido.
E os dias passados voltavam a passar ali, ao mesmo tempo lúcidos e indefinidos, como se nunca os tivesse vivido de todo. Restava-me deles um amargor e a solidão que se me agarrara ao peito como hera a um muro.
O calor enchia já a sala. Alguém me ofereceu um leque. O negro veio de dentro com recado do patrão para se ir para a praia. Toda a gente se ergueu e as crianças alvoroçaram-se.
De tão pesado, o ar bem podia ter feito estalar a porcelana da xícara.»
c.a. obrigada por estes textos de Maria Ondina Braga, de quem, não sei porquê, não tenho nada.
ResponderEliminarMas esse é também um bom motivo para vir aqui lê-los.
Um abraço e bom fim-de-semana.
Este, então, julgo que é particularmente difícil de encontrar. A editora já não existe. Encontrei-o entre os restos do stock de uma livraria que há muito faliu. E é pena, porque é um livro extraordinário.
ResponderEliminarObrigado por ler, obrigado por me dizer que leu. Um abraço grato, com votos de bom fim de semana também.
Volto aqui, porque ao falar em "stock de uma livraria que faliu", lembrei-me de um mail que recebi que informava da liquidação total que se está a fazer até 31 de Dezembro na livraria alemã, ao Marquês de Pombal. Como não pude ainda confirmar se a informação é verdadeira, não reencaminhei o mail para si, mas fica aqui esta nota e, quem sabe, a ser verdade, não poderá ter algumas preciosidades que lhe possam interessar.
ResponderEliminarUm abraço.
Obrigado, Maria Josefa.
ResponderEliminarOutro abraço
Um texto belíssimo de Maria Ondina, que eu não conhecia.
ResponderEliminarPergunto-me muitas vezes porque não é editado o que realmente vale a pena e não toda aquela «lixeira» de ocasião, que nunca entrará na história da literatura? Eu sei porquê, mas revolta-me que se edite livros como objectos de moda, use e deite fora!?...
Um abraço,
Manuela
Tem toda a razão. Sabe, Manuela, depois de uma adolescência em que li praticamente tudo o que apanhei à mão dei por mim a ler cada vez menos ficção. Li sempre muito, mas nos últimos tempos sobretudo textos académicos, ensaios (de que gosto muito), biografias, autobiografias, diários, até livros de viagem. Mas romances não. Era raro começar um e levá-lo até ao fim. Descobri, recentemente, que a minha sensibilidade não está «sintonizada» com o «grosso da coluna» do mercado editorial e que por isso tinha deixado de ler. Quando não se é do meio (é o meu caso) ajuda ter orientação. Acabei por encontrá-la nalguns blogs, como, por exemplo, o «Com-Livros» da Teresa Sá Couto ou nos vários blogs do José António Barreiros. A escrita da Maria Ondina Braga é uma paixão dele, como, aliás, a da Irene Lisboa e da Clarice Lispector. Da Irene Lisboa ainda existe muita coisa e a Clarice tornou-se, recentemente, uma «escritora na moda». Aliás, faz-me alguma impressão vê-la citada, agora, em lugares, e a propósito de assuntos, que nada têm a ver com a obra dela, mas esta já seria uma outra conversa. Quanto à Maria Ondina, o que existe é muito pouco, de facto, sobretudo porque merecia muitíssimo mais. Este texto é um belo exemplo, o livro, como já referi, é extraordinário.
ResponderEliminarPartilhar com alguém aquilo que se gosta é um prazer cada vez mais raro e por isso comentários como o seu são um consolo de alma. Bem haja! Um abraço muito grato.