O papagaio do pensamento

«Note-se que aquele que escreve, por um circunlóquio próprio, posição, atitude (e estou fazendo gestos, hem! virando as mãos para o peito... escapa-se-me a palavra), atitude expectante, recolhida ou de rodeio, raro aborda de pronto o tema escolhido, que andou ruminando, com mais ou menos consciência. E porquê? Suponho que pelo receio de errar, de se exceder, de dizer o que não quer, que apenas suspeita.
A sua atitude, que apontei, é toda de tentação e de esquivança, de flutuação. E por isso muitas vezes fala de alhos pensando em bugalhos.
Outro problema, se problema é, e se no primeiro não está implícito, se põe a quem escreve. A quem escreve que é como quem diz: a quem trabalha da pena e se entretém gastando o espírito, excitando-o e refreando-o ao mesmo tempo em cogitações literárias. E é o modo de surpreender (de surpreender não digo bem, bem, de segurar) o próprio pensamento. Ou antes a dificuldade, a incerteza, a impotência de lançar o fio bastante para a subida do 'papagaio do pensamento', papagaio que há-de arrancar de baixo por efeito de um sopro mais raro que o vento, sendo ele mais frágil que papel de seda.
O sopro de arrancada e depois o fio a largar, são... que são? dificuldades e incógnitas, fora de dúvida, sempre propostos ao manejador da pena.
Tanto assim que se lê um bocado de prosa, como este de Camus, prosa eivada de poesia, mas quase levada à mão, medida, tensa, e sente-se a cautela do seu autor, dirigindo-a. Isto é, a porção de fio lançado e a resistência da mão sustentando-o.»

[Irene Lisboa, «Solidão II»,  Editorial Presença, p.114-115]

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