A escrita (novamente)

Escrever

Se eu pudesse havia de... de...
transformar as palavras em clava!
havia de escrever rijamente.
Cada palavra seca, irressoante!
Sem música, como um gesto,
uma pancada brusca e sóbria.
Para quê,
mas para quê todo o artifício
da composição sintáctica e métrica,
este arredondado linguístico?
Gostava de atirar palavras.
Rápidas, secas e bárbaras: pedradas!
Sentidos próprios em tudo.
Amo? Amo ou não amo!
Vejo, admiro, desejo?
Ou não... ou sim.
E, com isto, continuando...

E gostava,
para as infinitamente delicadas coisas do espírito
(quais? mas quais?)
em oposição com a braveza
do jogo da pedrada,
da pontaria às coisas certas e negadas,
gostava...
de escrever com um fio de água!
um fio que nada traçasse...
fino e sem cor... medroso
Ó infinitamente delicadas coisas do espírito...
Amor que não se tem,
desejo dispersivo,
sofrimento indefinido,
ideia incontornada,
apreços, gostos fugitivos...
Ai, o fio da água,
o próprio fio da água poderia
sobre vós passar, transparentemente...
ou seguir-vos, humilde e tranquilo?

Irene Lisboa (João Falco), Folhas Soltas da Seara Nova (1929-1955), Antologia, Prefácio e Notas de Paula Morão, INCM, p.132-133

8 comentários:

  1. Como é que esta mulher, tão prosaicamente, escreve tâo boa poesia?
    E não há menos mérito naquele que escolhe...

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  2. Uma questão de sensibilidade?
    Tem razão,esta «Antologia» é óptima. Está esgotada. Descobri-a ontem, no único alfarrabista de Faro. E também uma selecção de poesias de Sá Miranda, de Rodrigues Lapa (ed. de 1942). Transcrevo-lhe o primeiro verso:

    «Comigo me desavim,
    sou pôsto em todo perigo:
    não posso viver comigo
    nem posso fugir de mim.»

    Apaixonei-me... :-)

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  3. O Alfarrabista terá sido o da Rua Francisco Horta, nº15, c.a.?
    Quanto à paixão,vai ser um amor difícil, porque Sá de Miranda é muito críptico, mostra-se pouco.
    Mas vale a pena acompanhá-lo, toda uma vida: tem sempre coisas novas a partilhar connosco...

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  4. O alfarrabista é na Rua do Alportel, n.º 86-A. Tem uma loja online. Cfr. aqui:
    http://www.livrariasimoes.com/loja/
    Esse que refere não conheço, mas registo. Obrigado!
    Esta edição, que agora encontrei, pareceu-me ser a indicada para um neófito, porque tem excelentes notas. Havia uma outra, mais completa, mas menos adequada à minha ignorância. Aconteceu-me o mesmo com outro livrinho, que comprei há mais de trinta anos, com textos dos prosadores da Casa de Avis, também com prefácio e notas de Rodrigues Lapa. Para mim é precioso, porque descodifica. Conto que este faça o mesmo. E também com a sua ajuda, claro. Talvez se recorde que foi um poema que colocou no seu último «post» sobre Sá de Miranda que me «inoculou» :-)

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