20/08/10

A escrita (novamente)

Escrever

Se eu pudesse havia de... de...
transformar as palavras em clava!
havia de escrever rijamente.
Cada palavra seca, irressoante!
Sem música, como um gesto,
uma pancada brusca e sóbria.
Para quê,
mas para quê todo o artifício
da composição sintáctica e métrica,
este arredondado linguístico?
Gostava de atirar palavras.
Rápidas, secas e bárbaras: pedradas!
Sentidos próprios em tudo.
Amo? Amo ou não amo!
Vejo, admiro, desejo?
Ou não... ou sim.
E, com isto, continuando...

E gostava,
para as infinitamente delicadas coisas do espírito
(quais? mas quais?)
em oposição com a braveza
do jogo da pedrada,
da pontaria às coisas certas e negadas,
gostava...
de escrever com um fio de água!
um fio que nada traçasse...
fino e sem cor... medroso
Ó infinitamente delicadas coisas do espírito...
Amor que não se tem,
desejo dispersivo,
sofrimento indefinido,
ideia incontornada,
apreços, gostos fugitivos...
Ai, o fio da água,
o próprio fio da água poderia
sobre vós passar, transparentemente...
ou seguir-vos, humilde e tranquilo?

Irene Lisboa (João Falco), Folhas Soltas da Seara Nova (1929-1955), Antologia, Prefácio e Notas de Paula Morão, INCM, p.132-133

8 comentários:

  1. Como é que esta mulher, tão prosaicamente, escreve tâo boa poesia?
    E não há menos mérito naquele que escolhe...

    ResponderEliminar
  2. Uma questão de sensibilidade?
    Tem razão,esta «Antologia» é óptima. Está esgotada. Descobri-a ontem, no único alfarrabista de Faro. E também uma selecção de poesias de Sá Miranda, de Rodrigues Lapa (ed. de 1942). Transcrevo-lhe o primeiro verso:

    «Comigo me desavim,
    sou pôsto em todo perigo:
    não posso viver comigo
    nem posso fugir de mim.»

    Apaixonei-me... :-)

    ResponderEliminar
  3. O Alfarrabista terá sido o da Rua Francisco Horta, nº15, c.a.?
    Quanto à paixão,vai ser um amor difícil, porque Sá de Miranda é muito críptico, mostra-se pouco.
    Mas vale a pena acompanhá-lo, toda uma vida: tem sempre coisas novas a partilhar connosco...

    ResponderEliminar
  4. O alfarrabista é na Rua do Alportel, n.º 86-A. Tem uma loja online. Cfr. aqui:
    http://www.livrariasimoes.com/loja/
    Esse que refere não conheço, mas registo. Obrigado!
    Esta edição, que agora encontrei, pareceu-me ser a indicada para um neófito, porque tem excelentes notas. Havia uma outra, mais completa, mas menos adequada à minha ignorância. Aconteceu-me o mesmo com outro livrinho, que comprei há mais de trinta anos, com textos dos prosadores da Casa de Avis, também com prefácio e notas de Rodrigues Lapa. Para mim é precioso, porque descodifica. Conto que este faça o mesmo. E também com a sua ajuda, claro. Talvez se recorde que foi um poema que colocou no seu último «post» sobre Sá de Miranda que me «inoculou» :-)

    ResponderEliminar
  5. Obrigado, Maria. Grato pela visita.

    ResponderEliminar

Tragédia

 (...) The true aristocracy and the true proletariat of the world are both in understanding with tragedy. To them it is the fundamental prin...