Glosa à chegada do Outono

O corpo não espera. Não. Por nós
ou pelo amor. Este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura acetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sede, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera; este pousar
que não conhece, nada vê, nem nada
ousa temer no seu temor agudo...

Tem tanta pressa o corpo! E já passou,
quando um de nós ou quando o amor chegou.

1958

Jorge de Sena, Versos e alguma prosa de
prefácio e selecção de textos de Eugénio Lisboa,
Co-edição da arcádia e Moraes, p. 56


Com envoiMR

8 comentários:

  1. A leitura de um poste, sempre ou quase sempre gradual, pelas limitações da altura do écran, cria-nos muitas vezes a tentação e curiosidade de o atribuir - duplamente, nalguns casos: refiro-me a Blogues multi-colaborados. Neste caso, a qualidade ou falta dela, já me dá pistas que me permitem circunscrever as autorias - dos textos ou poemas, e de quem postou.
    No caso de Blogues com um único colaborador ("A Casa Improvável", por exemplo), a situação é diferente. A adivinhação ou não, pela leitura visual e gradual que vou fazendo, aponta apenas para a tentativa de descoberta da pertença do texto. É evidente que, se não soubessemos de que Blogue se tratava, ao ouvir as músicas (normalmente não clássicas) de "A Casa Improvável" perceberíamos, de imediato, um bom gosto singular, algo "exquis"- no melhor sentido da palavra.
    Da leitura deste poema, gradual como referi,não adivinhei o autor, mas apercebi-me, logo,da sua grande qualidade. Pois de Jorge de Sena, se tratava. E a música de Mahler(via Bejart)assenta-lhe como uma luva.Excelente, c.a..

    P.S.:Desculpe,c.a.,o testamento e o espaço que ocupei da sua Casa, mas eu tinha que dizer isto (tudo).Bom dia!

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  2. Eu também adorei o poema - não me lembrava dele - e do Donn/Béjart que não conhecia. Não sabia que Béjart tinha coreografado este Adagietto de Mahler. Eu, que não sou mahleriana, adoro esta música. Muito, muito obrigada, c.a.!
    E vou fazer um acrescengto a um post que fiz hoje no Prosimetron.

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  3. Por favor, não me agradeça, APS. Embora conheça as suas reticências relativamente a Mountain View, para ser justo tenho de reconhecer que foi a extraordinária perspicácia do senhor Google, ao conduzir-me até ao seu Arpose, a responsável por, num período de tempo inferior a um ano, eu ter conseguido chegar à poesia de Jorge de Sena. Porque, para ser verdadeiro, tenho de lhe confessar (com muita tristeza) que antes de ser leitor diário do Arpose, não lia poesia, nem sequer às vezes, nem mesmo raramente. Só muito muito excepcionalmente, alguns poetas (muito poucos). E agora não só leio, sem ligar por aí além aos nomes, como sou capaz de comprar livros e até me atrevo a escolher os poemas. Já reparou nesta maravilha? A si o devo. E ainda me pede desculpa?????!!!!!
    Uma óptima noite para si!

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  4. Através das minhas leituras no Prosimetron, apercebi-me que partilhamos o amor pela dança, MR, e que Béjart é uma paixão comum. Tenho uma cassete de vídeo, que comprei há uns anitos largos, com o melhor de Béjart, e foi lá que encontrei o Adagietto. Mais recentemente dei conta que estava no You Tube, mas até ontem não tinha encontrado, ainda, um texto que me levasse até ele. Comprei o livro na passada quinta feira, ontem (sexta), ao final da noite, dei uma leitura rápida nos poemas e acabei por ficar «encalhado» neste, precisamente por causa da associação ao bailado. Quando consigo fazer este tipo de «clic» entre algo conhecido (e amado) e algo novo, sinto-me feliz. Progrido. Naturalmente sinto-me ainda mais feliz quando fico a saber que o meu «clic» dá prazer aos meus Amigos. Muito obrigado aos dois!

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  5. O Outono do corpo é diferente da Primavera, não se escolhe, sente-se...

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  6. Tem razão, o Outono sente-se, mas por que diz que a Primavera se escolhe?

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  7. Porque por vezes escolhemos ser "velhos" antes do tempo e "forçamos" falsas Primaveras. O Outono, quer se queira quer não, sente-se e apanha-nos mesmo que se escolha ser "jovem"... o corpo não responde... pelo menos da mesma maneira.

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  8. Compreendo agora a sua observação. Nunca tinha pensado nisso... Obrigado.

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