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29/10/11

Campo de paz

(...)
Quem me dera
poder renegar-me
e renascer!
Renascer de olhos enxutos
e de coração frio.
Com a mão estendida
traçar um círculo;
nele me sentar e dele ver o mundo...
Círculo
que eu própria alargasse,
ou reduzisse...
Ó meu sonhado,
desejado
e nunca alcançado
campo de paz,
de conformação,
e de senhorio! 

Irene Lisboa, "Um dia e outro dia...outono havias de vir"
vol I - poesia I, Editorial Presença, p.233



20/08/10

A escrita (novamente)

Escrever

Se eu pudesse havia de... de...
transformar as palavras em clava!
havia de escrever rijamente.
Cada palavra seca, irressoante!
Sem música, como um gesto,
uma pancada brusca e sóbria.
Para quê,
mas para quê todo o artifício
da composição sintáctica e métrica,
este arredondado linguístico?
Gostava de atirar palavras.
Rápidas, secas e bárbaras: pedradas!
Sentidos próprios em tudo.
Amo? Amo ou não amo!
Vejo, admiro, desejo?
Ou não... ou sim.
E, com isto, continuando...

E gostava,
para as infinitamente delicadas coisas do espírito
(quais? mas quais?)
em oposição com a braveza
do jogo da pedrada,
da pontaria às coisas certas e negadas,
gostava...
de escrever com um fio de água!
um fio que nada traçasse...
fino e sem cor... medroso
Ó infinitamente delicadas coisas do espírito...
Amor que não se tem,
desejo dispersivo,
sofrimento indefinido,
ideia incontornada,
apreços, gostos fugitivos...
Ai, o fio da água,
o próprio fio da água poderia
sobre vós passar, transparentemente...
ou seguir-vos, humilde e tranquilo?

Irene Lisboa (João Falco), Folhas Soltas da Seara Nova (1929-1955), Antologia, Prefácio e Notas de Paula Morão, INCM, p.132-133

04/07/10

A filha da sereia

Esta história foi contada:
Meu pai teve amores com uma sereia e eu deles nasci. Nunca conheci mãe. Fui criada sem carinho e sem amor e tive a má ventura de nascer com os pés soldados. Meu pai desapareceu com os remorsos da minha infelicidade e eu, deixada a estranhos, conheci todos os amargores da vida.
Diziam que sabia cantar e era habilidosa, até me gabavam as mãos e os olhos, mas nunca me amaram. Consumia a minha vida a chorar, a cantar e a trabalhar. Cada vez era mais triste e à roda dos olhos creei círculos negros. As minhas mãos pareciam de cera, nunca ria nem tinha esperanças. Sonhava muito, só os sonhos me animavam. E de uma vez com tanta fé sonhei que o meu sonho se realizou. Parece impossível? Mas não é, ides ouvir.
Eu tinha adormecido a pensar que havia de ser feliz. Não era um pensamento certo, era cansaço de dor.
Fui fechando os olhos até que caí num sono profundo. Noite alta sinto uma voz... chamava por mim e era tão terna como ainda nunca ouvi outra. Desperto. Entra-me pela porta um grande resplendor de luz e no meio uma figura linda a sorrir. Era ela que me falava. Trazia na mão uma bola de oiro que disse ser o pomo da boa sorte. E que mo entregava... sobre ele havia eu de correr mundo... que nunca parasse, os bons amantes me socorreriam.
Há tanto tempo! Corro, corro, corro. Tenho os pés colados ao pomo...
A filha da sereia ia falando e o príncipe e a namorada ouviam-na condoídos.
O príncipe desejava socorrê-la, sem saber como. A noiva coma as mãos descaídas parecia ansiosa. Assim que a outra se calou baixou-se e retirou-lhe o pomo dos pés, sem custo nenhum. A rir apresentou-o na palma da mão.
A filha da sereia atónita deu um grito. Começou a andar e a correr, voltou para trás, abraçou os namorados, chorou de gozo, abençoou-os e disse que para todo o sempre os queria servir e amar.
A noiva com os olhos brilhantes continuava com o pomo na mão. O noivo tomou-lho, por ela lho oferecia, e a filha da sereia ia dizendo:
Sêde felizes, bem o mereceis... a fada mo afirmou, sois os perfeitos amantes...

Irene Lisboa, 13 Contarelos que Irene escreveu e Ilda ilustrou, p. 68 a 71.

15/04/10

Histórias com galinhas

Gostaria de fazer um pequeno romance, uma apresentação e seu desdobramento, sem drama necessariamente, da maternidade das galinhas. Dos seus cuidados, passos, cacarejos, lições, calcar firme, de patas abertas e movimentos pausados, bicadas no chão apelativas ou demonstrativas, enquanto os tontos, mimosos 'pitos' doidejam inconscientes, transgressivos e entusiasmados, atordoados, neste mundo grande e novo que se lhes abre de meia dúzia de passos. As mães, sabedoras e educativas, não os largam, indiferentes aos estranhos.
Irene Lisboa, Solidão II, Editorial Presença, p.143


Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.
Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.
Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se pode­ria contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.
Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, pare­cia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:
— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!
Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:
— Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!
— Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.
Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.
Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.
Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.
Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.
Clarice Lispector, Laços de família - Uma galinha, Livros Cotovia, p.27-29

19/03/10

«Lembro-me da Maria...


«Vi-a pela última vez, oh! há já tanto tempo! estava eu a banhos em Santo Amaro. Porém, desses banhos sujos e pobres nem vale a pena falar. Apetece-me, sim, recompor a minha conversa com a Maria. Não digo que tintim por tintim mas, enfim, recompô-la.
A Maria levava um menino, o seu menino ao colo.
Maria, Maria, quem te viu e quem te vê... pensei, mas sem lho dizer.
Era uma tarde quase morta e os lugares tristes e feios, pesados; não como estes do lado de cá, dobrado São Tiago. Povos miseráveis, do fim do mundo, currais humanos e cerros agrestes, onde os vilões ricos vão caçar no tempo.
Maria!
Admiro-me de a encontrar, mas porquê, se ela daqui é, se estou à vista do seu povo?
Não te esperava, lhe digo.
De menino ao colo, meio dormente, ela sorri-me. Mas com que beiços e com que olhos? Oh! nanja com os seus antigos. Onde irão bem eles e os seus perdidos jeitos?
Que fazes, rapariga? Deixei de te ver...
Não tornei lá, nada não...
Então?
Agora guardo um velho, sabe a senhora, fico de vela a ele, e toda a noite, ergo-o e deito-o por mor de... a senhora bem me entende, como já não tenho que perder...
E o teu menino?
Muito 'costipadinho'! Passa a noite comigo, enrolado nuns farrapos. Eu não me deito.
E o pai dele?
Ó!
A Maria vira a cara, retraída, repetindo-me: ó! ó!
Porém o narizinho curvo da criança, como um biquinho de papagaio, é perfeitamente o do lojista seu pai. Que o repudia, necessariamente. Ele, a mulher e os irmãos e cunhadas de cada um dos lados.
A Maria é de quem na quis e de quem na quer! declarava em baixo duro a senhora Teresinha, sua patroa, P!... De noite recebia o meu na cama, dijem, e de dia, e de dia? quem no sabe, lá por onde ela andava?
E a Maria, ali parada na minha frente, desluzida como a própria hora em que a surpreendo, naquela passagem escura e afogada de uma canadita da serra, pedregosa, húmida, está esperando a minha esmola... Ah! Maria, Maria, quem te viu e quem te vê!
O seu menino triste, muito entrapado, mas com o biquinho de papagaio visível, só me lembra o pai.
Estás marcado, penso. Mas não lhe quero mal, porque lhe havia eu de querer mal? Por mais que te reneguem estás marcado! E o lojista seu pai aparece-me. Pesadão, barrigudo, de coses caídos, de alpergatas desatadas, de olhar baço, sem freguesia, encostado ao balcão sobre um tapete de papéis, trapos e fiapos de lã churra. Pai daquele anjinho pária... desfrutador daquela mulher que foi uma aurora... depressa apagada pelo desprezo de todos e pela fome.
Ele não te dá nada? pergunto-lhe.
Ó! fui-me lá a chorar, pró quê? atiraram-me c'uma  manta velha e más palavras, e que se eu tornasse...
Chamavam a guarda?
É como diz.
Adeus, Maria, adeus.
Que sítios, que pobreza e que aridez! Fragas, mato, rijos giestais... São Tiago à vista, altaneiro, e por trás dele, serra dentro, os grandes maninhos e os baldios despovoados, às corcovas, imensos, onde os rios nascem e uivam os lobos...
Em que buraco se há-de meter o coração de quem tudo isto vê? Um panorama aflitivo e augusto, esmagador, e uma miséria rasteira.
O menino morre e a mãe dele, mirrada, já feia, é uma candeia a apagar-se também.
E estaria escrito, porque tudo assim aconteceu. Foi-se o seu menino, mais um anjinho para o céu, sem que ninguém quase disso desse fé, e após ele a mãe: um alívio para a terra.
Ó serra impiedosa!
A Maria ia à Guarda, uma lonjura, talvez esmolar. De menino sobraçado. E também fazer um pneumotórax. Um pneumotórax!
As cidades, até mesmo as serrenhas, têm os seus luxos e contemplações com os pobres que apanham a tuberculose.» 

Irene Lisboa, «Solidão II»,  Editorial Presença, p.132-134

25/02/10

O papagaio do pensamento

«Note-se que aquele que escreve, por um circunlóquio próprio, posição, atitude (e estou fazendo gestos, hem! virando as mãos para o peito... escapa-se-me a palavra), atitude expectante, recolhida ou de rodeio, raro aborda de pronto o tema escolhido, que andou ruminando, com mais ou menos consciência. E porquê? Suponho que pelo receio de errar, de se exceder, de dizer o que não quer, que apenas suspeita.
A sua atitude, que apontei, é toda de tentação e de esquivança, de flutuação. E por isso muitas vezes fala de alhos pensando em bugalhos.
Outro problema, se problema é, e se no primeiro não está implícito, se põe a quem escreve. A quem escreve que é como quem diz: a quem trabalha da pena e se entretém gastando o espírito, excitando-o e refreando-o ao mesmo tempo em cogitações literárias. E é o modo de surpreender (de surpreender não digo bem, bem, de segurar) o próprio pensamento. Ou antes a dificuldade, a incerteza, a impotência de lançar o fio bastante para a subida do 'papagaio do pensamento', papagaio que há-de arrancar de baixo por efeito de um sopro mais raro que o vento, sendo ele mais frágil que papel de seda.
O sopro de arrancada e depois o fio a largar, são... que são? dificuldades e incógnitas, fora de dúvida, sempre propostos ao manejador da pena.
Tanto assim que se lê um bocado de prosa, como este de Camus, prosa eivada de poesia, mas quase levada à mão, medida, tensa, e sente-se a cautela do seu autor, dirigindo-a. Isto é, a porção de fio lançado e a resistência da mão sustentando-o.»

[Irene Lisboa, «Solidão II»,  Editorial Presença, p.114-115]

21/01/10

Outro dia

Leio cinco versos.
Já os tinha lido, depressa,
a apanhar-lhes o espírito,
no ar.

Que versos!
Mal os entendi,
não os apreciei...

Leio-os agora mais devagar,
palavra a palavra...
Cada palavra,
ou duas,
ou três...
Sim, é isto...

Assim se pensa,
efectivamente,
depressa ou devagar,
por meios sentidos...
Cada palavra é um título,
E larga!
Tanto vale sendo verbo
como adjectivo...
E não há adjectivos banais,
nem de mau gosto,
há pensamentos...
coisas visíveis
ou invisíveis,
mostradas de repente.

Mas escapadiças...
É sempre preciso
um esforço novo,
inteligência
e sensibilidade
para as compreender...
'saisir!'


[Irene Lisboa, «um dia e outro dia... outono havias de vir», volume I, poesias I, Presença, p.272-273]

P.S.: Para AJS, com gratidão.

06/01/10

O artista brinca sempre

«Gostava sim - porque não havia de gostar? era um luxo, um prazer do espírito - de fazer novelas. De tratar figuras e cenários, de falar pelos outros, escrupulosamente; de seguir pistas sentimentais.
Mas não tenho de as fazer!
A qualidade de desenvoltura artística não preenche os espaços, todos os espaços, de uma composição literária.
Histórias, saber contar histórias (mesmo nestas horas chatas e banais, vazias, do tempo individual) deve ser agradável. E ver depois que se contaram bem, muitíssimo agradável!
M. contou histórias novas. Sem bizararia. O seu mérito foi esse. Achou histórias para contar, e deu-lhes alma. Caiu aqui, levantou-se ali... mas carregou-as, insuflou-as de ardência, de espectáculo e de modéstica, de personalismo afectivo.
I. achou (foi lúcida) que era uma portuguesa. E que os portugueses são todos assim, mas porquê? desenganados, quase cépticos, deplorativos.
Sim, há excessivo subjectivismo, excesso de intromissão pessoal na narrativa dos portugueses. Põem-se demasiado ao espelho nas suas obras. Hábito? Moda fatalmente transmitida? Comodidade? Restrição de estilo?
Mas M. contou, soube contar coisas de grande afinidade, todas sujeitas a um nexo. Coisas de um lado, de uma janela da sua visão. E bateu-as, encheu-as dos seus sentimentos.
A vida, vista, presenciada, é plana, insinuosa, sem vulto. M. deu-lhe vulto; pela anedota? Sim, mas também pelo seu comentário e o fervor com que apresenta a anedota.
M. mostrou-nos a sociedade que conhece, mas com que não lida, com que se não comprometeu. Porque M. tem no seu livro muitos dos seus sentimentos e ressentimentos, mas não as suas atitudes, o seu espírito mundano, convivente, nem o seu 'savoir-faire'.
Esta é a grande dificuldade ou cautela do artista: dar-se, comprometendo-se. Deseja e foge a comprometer-se. O artista brinca sempre. Consciente e inconsciente. Defende-se dos outros, seus próximos. Dos outros e do seu próprio constrangedor, pesante, imediato ambiente.»

[Irene Lisboa, «Solidão II», Editorial Presença, 1999, p.92-93]

02/01/10

O gato

«O elevador estava parado. Entrei eu nele e entraram outros, pouca gente. Ainda não era ou talvez já tivesse passado a hora da saída dos 'funcionários' e o Torel naquele momento também dava um pequeno, quase nulo contingente de passageiros.
Fazia sol e havia tranquilidade.
 Como é que o diabo de um gato se havia de meter debaixo do enorme elevador, já depois do homem das máquinas ter dado o seu toque nas rodas?
O gato vai morrer, pensámos nós e olhámos suponho que com vergonha uns para os outros.
O elevador devia ficar parado!, dar o alarme ao outro que ia a subir!
No entanto, não parou. O guarda-freio e o condutor eram escravos da casa das máquinas que punha os elevadores em movimento; consideraram uma fatalidade o gato morrer e não tiveram uma ideia nem um gesto para o impedir. Que é que os passageiros podiam fazer? Dar um grito? Seria tremendo, e quem o ousaria?
 Cobarde!, chamava-me eu sem coragem ouvindo a seguir os miados terríveis, raivosos ou dilacerantes do gato. Enquanto o gato berrou, o que durou pouco mas ainda assim bastante para cada um se poder acusar de seu matador, havia um mal-estar disfarçado nos passageiros. Ficaram à espera.
O condutor, alto e gordo, uma cara agradável que se via todos os dias, mostrava uma compaixão discreta pelo animal: aquilo dura pouco... já tem acontecido...ficou entalado.
E durou.
Mas a surpresa, a dor, a violência de que o pobre gato foi vítima ficaram ecoando. Quem se subtraía a senti-las em si, na sua consciência, nos seus nervos, onde quer que fosse?
Teria o gato girado com a roda?
Dados aqueles poucos miados terríveis calou-se.
Na cara do condutor transparecia então a inteligência do caso, queria ele explicar: eu não lhes dizia?
E lá ficou no seu posto. Nós saímos necessariamente aliviados.
Subir e descer neste veículo em cada dia do ano é cumprir uma pequena e ordinária rota, a pino, que sem exagero se pode considerar tão edificante como dar largas voltas pelo mundo.
Naquele dia tinha morrido o gato, noutros tudo se apresentaria banal, noutros voltariam os factos extraordinários.
É muito útil haver coisas e lugares constantes onde afinal a vida varie. Neles se nos afina a sensibilidade.» 

[Irene Lisboa, «Esta cidade! - O Lavra», Editorial Presença, p.98-99]  
 

28/10/09

Estranhos

«As mulheres e homens que vêm da feira, elas com gamelas à cabeça e eles desasados e de cântaros na mão, passam-me debaixo das janelas como estranhos, que me são.
Dentro de qualquer panelita ou tacho de barro um punhado de sardinhas... E vão, devagar, trajados de domingo, calçados... E eu olho-os indiferente, pensando apenas no barro antiquíssimo de que eles se servem, na petinga salgada que comem, nas suas vidas, paralelas, e jamais concordes, jamais fundíveis com a dos bons proprietários.»
[Irene Lisboa, «Solidão» II, p.222]

01/10/09

Fora da medida

Naquela hora em que chorei, vexada, sozinha, sentada, a meio da tarde?
É sempre assim que se ressumam as duas ou três lágrimas presas, de finalização de um sentimento... Dos rápidos sentimentos brincados, que mal têm significação, que nos atribuímos por desporto amargo.
É verdade! Eu gosto de pensar, mas à custa dos outros, à custa dos seus movimentos, do seu jogo de vida...
Mas furtam-mo, furtam-mo!
Furtam-mo desta maneira: acham-me imaleável para tomar nele uma boa, uma airosa e consentânea parte.
Sou dura, abrupta. E tão dura quanto repentista, simplória, ingénua, desprevenida. Acompanho mal... atribuo fora da medida. E a uma hora do dia, calha à tarde, calha à noite, as minhas duas lágrimas de liquidação vêm-me.
Tenho um círculo de solidão! Nada o preenche. E o pouco que nele entra, sai... Sai escorraçado. Sempre indigno de lá ter entrado.
Mas afinal, o que ontem deixei por dizer?
Este assunto do R. cansa-me. De todas as cores que teve, já quase não tem nenhuma.
As pessoas afastam-se de nós, nós despegamo-nos delas... e o que havia a dizer, desfez-se!
Às vezes penso, pensava: quem importa aqui?
Eu... amolecida e curiosa, desperta, depois deprimida? Talvez.
Da pessoa dele, o essencial escapou-me. É isso que me desgosta.

[Irene Lisboa, Solidão II, Ed. Presença, p.78]

17/09/09

Notas ao acaso

«Sofro a necessidade do amor, penso às vezes. E creio senti-la.
Sofro do amor sem partilha, decepcionado. Sofro de desânimo, de desejo, de desalento; sofro
.
Aperta-me, comprime-me a secura dos outros. O seu egoísmo, a sua insociabilidade, ou a sua falsa, interesseira sociabilidade, a sua dureza, a sua aridez, a sua volubilidade! Sinto-me repelida por tudo isto.
E não serei... não serei...
Haveria jamais amor que me contentasse?
Correspondência para a minha pobreza e ânsia?

Mas conquistada ela - com o que não sonho - não me sentiria liberta para me deslocar sempre, em corpo e em espírito, em realidade e em desejos?»
[Irene Lisboa, Solidão II, p.55]

30/08/09

O criador e a criatura

«Tive de esclarecer a amável estranheza de Q. sobre o meu gosto de não ser conhecida.
Gosto e utilidade!
Mas não esclareci nada.
Tratava-se de atitudes literárias.

Escrever assim como escrevo, sem qualquer ambição de notoriedade, parece-me extraordinariamente útil. Mas não o sei pôr em liguagem clara! Por isso me embrulhei em evasivas. Desnorteei Q., que com a sua galantaria de lisboeta e de letrado, uma galantaria muito especial, me convidava a aparecer... Não sei onde, nem como.
Eu suponho, em boa verdade, que os anonimatos, que a folga e a inteligência dos anonimatos, se não podem definir bem. Que por si se justificam. Um anonimato é vital e elementar, espontaneamente útil; cobre as necessidade de cada um que o usa, esporádicas ou permanentes. Mas há quem tome o anonimato dos artistas por uma espécie de tarrafias, de gracinhas, de jogo ou de vaidade... E sê-lo-à!
A mim, porém, qualquer coisa de mais grave e mais indeterminada me tem levado a adoptar o anonimato, os pseudónimos. Talvez um subtil espírito utilitário, de defesa. De inversão da arrogância, da combatividade, também. De timidez, ou de fuga à responsabilidade intelectual, ainda... Não posso precisar perfeitamente o que seja! Eu julgo ter ainda sobre tudo isto, levemente contingente e exterior, a fugir-lhe... uma noção de que à obra de arte, reservada, independente, se pode ligar toda a indeterminação que lhe apraza, que lhe quadre!
Que significa um nome de autor? Nada! À roda destas coisas ligeiras que eu aproveito para meus temas literários, porque não há-de flutuar um dos meus nomes de ocasião? Tanto faz que seja X o protagonista, como X o seu explorador...
A literatura teve sempre muito de aberrativa, de fantasista. Nomes, pseudónimos, têm absolutamente o mesmo valor das figuras e das localidades. Não valorizam as obras.
E sendo a minha análise sempre tão cingida ao passageiro, sendo uma espécie de exploração da rápida eventualidade, não poderá admitir, com sofrível elegância, com propriedade, a variedade dos pseudónimos?
Este meu escrever sobre 'nadas', creio que até me chega a dar uma absoluta indiferença pelas 'categorias' literárias! Me desinteressa de todo o rang e classe... Me inquina cada vez mais de uma corajosa e perversa paixão de liberdade.
Os pseudónimos não me encobrem dos profissionais das letras, naturalmente!
Mas o mundo deles não é o meu...
O meu, o que por mim se interessa, com boa ou ruim humanidade, não é de letrados nem de artistas, nem sequer de gente de boa sociedade. É de gente de letras grossas! Grosseira, talvez, mas nem melhor nem pior que outra.
Se eu assinasse com o meu nome civil as bagatelas que escrevo, por quem é que seria tomada? Por uma extravagante, por uma deformada. E os que têm confiança em mim, deixariam de a ter.
Devo ser prudente. Com a minha gente é que me tenho sempre encontrado, dela é que eu sou um ruim e claudicante membro, mas ainda assim, não desprezado... Esquecê-lo, seria ingratidão.»

[Irene Lisboa, «Solidão» I, Editorial Presença, pág. 89 e 90]

21/08/09

Vim, para isto.

«Achei, enfim.
Estava folheando o diário de K.M. à procura de um pequeníssimo quadro, de que me lembrava e me parecia falso, benévolo, fantasista.
Apraz-me rectificá-lo.
São poucas as frases de lá. É um quadro verbal. Suponhamos que é isto:
Vim, diz ele.
E ela: sim?
Para isto... diz ele ainda, e puxa-a para si.
Ela, impressionada, sente-se desfalecer.
A minha rectificação pode vir a ter um ar tão gratuito como a fantasia de K.M., mas para mim é a minha... aquilo que sobre o facto admito ou penso. Enfim, anulo a precipitação dele e o pronto desfalecimento dela.
Ele chega, sobre as escadas. Nestas escadas não há espécie de mistério, nem tão pouco na terra nem na rua. Em parte nenhuma se manifesta, se respira aquela atmosfera pesada e excitante, que costuma animar a literatura irrealista.
Ele chega, ela espera-o. Espera-o sem feliz inquietação nem consolo. É uma mulher desconsolada. Pensa que ele não venha, que já não apareça; espera-o sempre sem confiança.
Mas para ele foi preparando uma infinidade de pequenas coisas graciosas, de que ele nunca se aperceberá. Deu-se a tarefas sucessivas, como as noivas. Espera-o com indiferença e tenacidade, é curioso! E despreza-o. Como o não conhece muito tem a impressão de que ele é caprichoso e também venal. Mas apesar da insegurança que sente, e da sua resistência, acha que ele representa muito para ela, que representa o mistério... É a luz e ela a borboleta cega.
Enfim, ele chega. O seu toque com os nós dos dedos à porta surpreende-a. Abre-lhe a porta e ele entra, mas de repente. Tão furtivamente, porquê? Ela pensava que lhe havia de ir abrir a porta em baixo (o fecho estava escangalhado), que não acenderia a luz, que ele a beijaria na escada... Tudo fatalidades, preconcebidas e agradáveis, como as do pequeno quadro de K.M.
Mas não! Ele entra rapidamente, embora sem intimidade, mostrando-se desde logo intruso. Depois apertam-se as mãos e sentam-se. A casa é pequena e faz frio. Os joelhos dele tocam os dela. Ela faz-lhe perguntas sem importância nenhuma, de amabilidade. Ele pouco fala. Vem de longe... Ri. É engraçado, realmente, um pouco estranho, um pouco esquivo. Ela sente-se desconcertada. Ele olha-a, diz-lhe coisas soltas sem pensar, e chega-se mais. Afinal viera... o coração dela mirra. Sente-se tão pouco desenvolta! Aceita tudo, desconsolada. Um abismo os separa, um abismo! E nem ele nada quer dela, mas beija-a. E beijando-a se excita.
Mas como se tinham beijado já? Nunca assim. Como se tinham beijado naquelas noites de Outono... sobretudo numa tão formosa, tão longa e tão estrelada, que ainda lhe parecia desgarrada, única? Nunca assim...Sem se importarem com o tempo! Com gosto perfeito ou imperfeito, sincero ou iludido, mas com uma sensação tão empolgante de desejo! Uma sensação tão rara de ânsia e de sofreguidão! Não se tinham dado um ao outro, ele negara-se, mas tinham-se doidamente beijado e desejado. Embriagado de enervamento e de cansaço.
E agora? Ele ali estava, mas como um desconhecido. Era um imoral, um céptico. Por fim ela põe-lhe levemente as mãos na cara. Fita-o muito de perto. Os olhos assim vistos fascinam. Parecem presos e mais largos, dominados... Os olhos dela, tristes, seguem o movimento vagaroso dos dele, a sua expressão ora paciente, ora maliciosa. Por fim uns e outros se cansam.
Mas se uma pequena palavra, um pequeníssimo acordo de intimidade se estabelecesse...
Ele sempre fala. E que lhe diz?
Umas coisas tão mesquinhas e tão calculadas! Tão inúteis, e mesmo tão vexatórias!
Ela, pisada, arrefecida, ouve-as.
Para aquilo viera... Há cobardia na sua atitude. Mas para quê ter vindo? Só para a ofender e humilhar?
O cálculo dos homens! As suas desculpas! Sempre e só o cálculo...
Aquela amargura que ela sentia não era nova. Não, não era. Ela conhecia-a, parecia-lhe que já desde a eternidade... Os homens abusavam dela, da sua real inocência.
E chorou. Caíram-lhe as lágrimas pela cara abaixo. Mas logo uma súbita secura a impassibilizou. Envergonhou-se de ser fraca.
E ele voltou a beijá-la. Talvez que a desculpar-se. Por fim beijaram-se com teima. E ele ficou.»
[Irene Lisboa, «Solidão», I volume, Editorial Presença, pág. 39-41]

Pantha rei

  Nenhum homem consegue banhar-se duas vezes no mesmo rio .  Porque não é o mesmo homem, nem é o mesmo rio. Tudo flui.    Heraclito, em vers...