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13/01/11

12/12/10

A vida a bordo

Se um dia soubesse contar das minhas viagens e das pessoas que nelas conheci, penso que teria um assunto de romance.
Primeiro, as viagens por mar. Há na vida a bordo certa intimidade, ao mesmo tempo espontânea e fictícia, que marca tanto os viajantes como a tripulação de um sinal humano e fútil. É-se nessas viagens mais sincero e mais insensato que nunca. Creio mesmo que ali, no meio das águas, cada qual se mostra o que deveras é, com as suas grandezas e as suas misérias, como se, postos de parte preconceitos e medos, todos quisessem, enfim, representar o papel que lhes ditou o grande autor.
Tais viagens são, sem dúvida, as mais interessantes e as mais inverosímeis também. O encanto que a ociosidade e o mar concedem àqueles dias no barco desfaz-se logo que se anuncia o porto de desembarque, ninguém se conhecendo mais depois, cada um ingénua e precipitadamente ocupado em reajustar a máscara do mundo.
Maria Ondina Braga, Estátua de sal, Círculo dos Leitores (ed. refundida e ampliada), p.167


06/10/10

Morrer por escrito

Não sei quem foi que disse que um diário equivale a um lento suicídio. Eu não estou a escrever um diário. Estou a passar para o papel recordações de tempos idos, ocasionalmente misturadas com impressões que vão surgindo. Sinto-me, no entanto, morrer aos poucos nestas linhas. O querer dizer o que se passa em nós, analisarmo-nos por escrito, ainda que a sós connosco, é devastador. Mas talvez eu já esteja mesmo morta. Quem fala é aquela parte de fora de mim sempre atenta à de dentro e a explorá-la, um atroz, um falso eu que tive de inventar para não desistir.

Maria Ondina Braga, Estátua de Sal, ed. refundida e ampliada, Círculo dos Leitores, p.81


Arvo Part, Spiegel im Spiegel; Pierart Natacha, coreografia e dança

23/09/10

Atrás de tempo...

Há um mês, se tanto, avisara ela o seu amigo de que, em tempo azado, deixaria Macau. E, sem se mostrar surpreendido, Lu respondera que atrás de tempo, tempo vinha, e que nas causas do coração... Desde quando é que o coração se regulava pelo calendário?
Maria Ondina Braga, Nocturno em Macau, Caminho, p.211



05/06/10

A esfinge

E nesta altura Ester a cair em si e a considerar em como andava apartada do seu próprio peito. Com isto de tomar para mim as vidas daquelas que me cercam, vou-me mudando, que sei eu? numa espécie de esfinge. A esfinge sentada à beira do caminho, um monstro de mistério e fatalidade. (...) Esfinge que não fazia quaisquer perguntas àqueles que se lhe aproximavam e muito menos os devorava. Esfinge de si mesma, Ester. (...) Ela, o seu coração trancado a sete chaves para tudo quanto significasse ternura. Por lealdade para com Xiao? Xiao, a desleal. Xiao que sumira, sem rasto nem retractação. Por lealdade para com a amiga china ou por amor próprio? Medo. E nesse instante, pondo ali Deus por testemunha, jurou que havia de encontrar-se com Lu Si-Yuan, a professora de inglês.

Maria Ondina Braga, Nocturno em Macau, Caminho, p.200




David Sylvian, Darkest Dreaming, do album Dead Bees On A Cake

29/05/10

Faiti !



Se Ester continuava a encontrar-se com Lu Si-Yuan, como antes, quem poderia assegurar? Talvez Zac, de zeloso. Ela própria assombrada de tão seguro sigilo. E imaginava-se dona de um mundo que nada tinha a ver com estes sitiados sítios. Um mundo que nem era o Bairro do Bazar nem o Jardim de Camões, tão-pouco a Concha-da-Tartaruga em Coloane. Um mundo que tinha, sim, a ver com a chuva, as tumultuosas torrentes do céu, o chão empoçado, ela a chapinhar de sapatos na mão. Trinidad frequentemente a interferir, a meter o bedelho, a porteira, o seu aviso: "Salir con tiempo tan feo?" Corria Ester escadaria abaixo, corria, não, voava, como se, em vez de chapéu-de-chuva, empunhasse um pára-quedas. Ocasiões em que o guarda chuva se virava na rua, tal as velas de um barco nas voltas do vento. Colhia então calmamente o velame, prosseguia à deriva, cabelos desatados, o rosto de quem se desbulhasse. Momentos mágicos, esses, não fosse aquele medo. Que o medo a gente acaba também por o adoptar. Gerado nas nossas entranhas, o medo é um fruto espontâneo e espúrio. Sem medo, seríamos certamente, se não insensíveis, pelo menos estéreis.
Ocasiões em que o carro do tenente passava por ela, a salpicava de lama, o rum-um-um do motor do dois cavalos mais furioso que o trovão. E Xiao Hé Huá, por onde andaria a essa hora o Botão de Lótus Amarelo? Saudades da chinesa, Ester. Saudades de quando atravessavam, juntas, o lago da cerca do colégio, a água pelos tornozelos, vermes como pequenas cobras ocultos no lodaçal: Cuidado, se esses bichos mordem o calcanhar, fica uma chaga crónica. Já na rua principal chamava um triciclo: 'Faiti !' Escuro dentro do triciclo, escuro e quente, um cheiro a bafio, o acoite da bátega na capota. E agora como uma fantástica viagem. Através de Macau. Para além de Macau. Uma vagabundagem ao longo dos seus sentidos, ao longo de si. A sua pena de não ter a quem contar tal aventura. Que o amor, as ocorrências do amor marcam-nas a confusão. E todavia, o caminho para lá, que claro! Igual à carta fechada na gaveta da mesa dos livros, o amor, os seus enigmáticos sinais, os seus símbolos selados, uma selva. Já o homem, ele que guardava consigo o encanto da clandestinidade, completo, o homem. Ninguém decerto compreendendo, caso ela contasse. Quem sabe, Xiao? Algum dia. Assim que tornassem a dormir as noites todas, a levantar-se uma aquando à outra, a cruzarem-se manhã cedo no corredor: 'Mor... o ... ning! Tsó shan!' E, ao dejejum, diante da tigela fumegante do 'chouk' com 'tau-fu': Tome do meu chá! 'It's refreshing!' Ou em noites de Inverno, a luz apagada, os seus murmúrios por trás da cana do compartimento. Então, sim, então havia de contar-lhe tudo (tudo?), mansamente e humilde. Contar para não vir a esquecer. Que a carta era sua, podia vê-la sempre que lhe apetecesse, tactear a finura do papel de arroz, o relevo dos traços a tinta-da-china, aspirar-lhe o aroma. Ele, contudo, o autor da carta... Tão raro, ele, tão remoto. Necessário fixá-lo para que não desbotasse com o tempo, não delisse como as imagens nos retratos antigos. Mas fixá-lo em quê? Em quem? Em Xiao Hé Huá, naturalmente. Xiao que, semelhante a ele, tinha olhos estreitos e faces esmaecidas. Semelhante a ele, descera ela das montanhas do Norte, Xiao, debruçara-se sobre os precipícios, ensanguentara os pés nas fráguas. Retê-lo em Xiao. Restituí-lo a Xiao?

Maria Ondina Braga, Nocturno em Macau, Caminho,  p.168-169     

24/03/10

Como quem se deslocasse pelo tacto nas trevas

«Nessa noite, após a retirada de Rosa Mística, a dor de novo a atacá-la, Ester, e agora sem tréguas. Já no entanto não lhe restava nenhuma dúvida. Que, com ela, os sentimentos, uma coisa lenta sempre, os sentimentos, lenta e labiríntica. Como quem se deslocasse pelo tacto nas trevas. Como quem caminhasse às cegas?
Sentada com a luz apagada e mergulhada em meditação, sentia-se subitamente exaltada, Ester, tal se tivesse febre. Uma exaltação que lhe vinha do facto de a mestra-dos-estudos, nesse passo, estar ainda mais cega que ela. Quem diria? Rosa que se gabava de ler nos olhos das criaturas. Perversidade da minha parte, estou a ser perversa... Vingança. É isso. Estou a vingar-me da mestra. A vingar-me de Macau? A nossa professora consta que vai casar com um oficial, a nossa professora! tresouvira certo dia a uma aluna. E Gandhora: Você sai com militares à noite, é? Extraviado o sono, a professora-de-inglês ora se deitava ora se sentava na cama. As desconfianças de Rosa quanto a Mr.Hó. E Mr. Hó afinal... Os seus chás com o chinês rico nada mais que um disfarce, um despiste. E tudo por mera casualidade. Pois, com ela, sentimentos e acções igualmente, tudo sem nenhum pé, sem nenhuma previsão. O contrário do que se dava com a vizinha de quarto, Xiao toda propósitos, toda proporções. Assim, porque a professora chinesa, semana sim semana não, ia visitar o padrinho a Hong Kong, o colégio inteiro ciente de que era o padrinho e que devia ser visitado. Xiao Hé Huá e a sua aura de coerência e de equilíbrio. A sua pura personalidade chinesa: confuciana? Os chineses acreditando que àquilo que inevitavelmente tinha de ser correspondia outro aquilo. Assim sobre um bom repasto um solene arrotar, e nos dia de jejum borboletas no estômago. Ela, no entanto, Ester... À toa, ando por aqui à toa, ando ao deus-dará. Deus? Mas teria Deus algum cabimento nesses embuços, nesses embustes? Deus era a paz e a paz jamais provinha de perfídias. Senhor, o que eu não daria para receber a paz! Graças dessas, contudo, exigiam renúncia. Mais que renúncia, destemor. Eu amanhã a sair à rua sem nenhuma reserva. A desafiar Macau, amanhã. Aceitando-me, eu, reconhecendo-me, em Macau. Amanhã...»


01/03/10

Os fios do coração



Tão difícil o encontro quão difícil é o apartamento.
Uma a uma as flores estiolam-se no quebranto do vento leste.
Os bichos-da-seda de primavera dobam até à morte os 
fios do coração:
O  pavio da vela tornando-se em cinzas antes de as lágrimas lhes secarem.
A preocupação do espelho da manhã é mudar nela o aspecto melancólico:
Alta noite a recitar um poema será que ela não sente o frio dos raios de luar?
A colina das fadas não é longe daqui.
Pássaro azul, apressa-te agora, vigia-me a estrada.


Li Shang-Yin, Poemas sem título, 812-858, China, Dinastia Tang, 
in Nocturno em Macau, de Maria Ondina Braga, Caminho, p.9 

31/01/10

A trança

Prédio de esquina moderno com varandas de cimento oblongas como grandes banheiras. Terceiro andar esquerdo. Salão Cleópatra.
Entrava-se pelas traseiras, que as portas da frente eram ocupadas por um capelista.
Na estrada, acocorados ao longo dos passeios, operários indígenas trabalhavam no calcetamento. E, de quando em quando, a voz do capataz rasgava o ar, áspera de comando.
Cinco horas da tarde. O elevador subia através de terraços brancos de sol com meninos nus e roupa a secar.
À porta, já cheirava a 'shampoo', a cosmético, a perfumaria.
Da salinha de espera, toda em cretone de desenho geométrico e rosas artificais, passava-se a um cubículo onde uma rapariga magra, de voz humilde, tratava da lavagem dos cabelos.
Mas a sala do cabeleireiro, a principal, a do canto arredondado da casa, guardava todo o interesse da história.
O artista, homem novo, algo obeso, coxeando acentuadamente, aparecia de costas, absorvido no penteado das clientes.
Podia-se vê-lo também em fotografias várias, compondo lindas cabeças de cabelos curtos como quem dispusesse flores em vasos. As fotografias surgiam pelas paredes, pelos tocadores, no pequeno vestíbulo, entre o aroma das loções, o cheiro ácido do estanho aquecido, o bafo dos secadores. O rosto do homem, porém, não se revelava em nenhuma delas. Só os ombros largos, o busto curvado, o gesto cuidadoso.

Sensação sempre deliciosamente renovada: o soltar dos cabelos.
A água tépida afagava.
Vinham à memória litografias do tempo da infância, em baús no sótão, com as ninfas dos lagos de cabelos húmidos e verdes.
"Menina, não ande de cabelos desatados. O demónio arma sarilhos com eles, rodopios, tentações..." A boca desdentada e agoirenta da velha Águeda ditava conceitos com figura de pecados.
O corpo atirado para trás como quem se abandonasse. Os dedos da rapariga magra que passavam e repassavam. O perfume macio do 'shampoo'.
Depois, o salão.
Aí era-se assaltado por algo de fantástico, uma espécie de conto de sortilégio e alquimia, com boiões de elixires coloridos, frascos de essências, caixas de pó, espelhos, pinças, pomadas. A noite africana chegando num ímpeto: uma aparição. A luz anilada das lâmpadas.
À volta, de cabeças coroadas de 'bigoudis', muito quietas, as senhoras lembravam bonecas enormes em exposição.

O mágico começou a abrir os cabelos compridos da nova cliente, muito de manso, ao jeito de quem esfiasse seda. Eram cabelos pretos, tão pretos que se diriam azuis, luzidios, lisos.
- Que maravilhosa cabeleira, 'madame'!
Não se esperavam daquele corpo irregular palavras assim gentis.
Ela contemplava no espelho o rosto do homem: traços finos, olhos claros, madeixa fulva para a testa. Uma cabeça que não pertencia àquele tronco. A cabeça de um deus!
Ágeis, as mãos escovavam, acamavam, compunham a cabeleira farta e longa. A face de Apolo compenetrava-se.
- Como sou pouco para este cabelo, 'madame'!
As bonecas dos 'bigoudis', nos assentos giratórios, voltavam-se mecanicamente, um ar curioso nos olhos de vidro.
O homem erguia agora a massa dos cabelos que lhe ocultava os braços. Experimentava enrolá-los na nuca. Ruborizava-se.
Ela sorria por dentro. Quantas vezes tinha acontecido aquilo? E com quantos cabeleireiros? Com aquele, todavia, não sabia explicar, mas era diferente. Os olhos dele, de tão límpidos, comoviam-na. Apetecia-lhe dar-lhe alguma coisa, dar-lhe os cabelos.
Da janela veio a fala nasalada do papagaio: «Que bela!»
A manicura, menina mulata, largou uma gargalhadinha.
A cabeleira desprendia-se, pesada, ia-lhe vestindo ombros e ancas, e, ao longo dela, as mãos do homem, muito brancas, lembravam borboletas adejando no capim ao sol, estonteadas, sem saber onde pousar.
Ao mesmo tempo emocionante e ridículo o busto forte do homem a balouçar de uma lado para o outro, as mãos apanhando ali, soltando acolá, inutilmente esforçadas, vencidas. O rosto bonito amuava. A fronte perlava-se de suor. E a noite de África (que as varandas abertas acolhiam inteira) a ajudar naquele teatro, a noite africana.
Ela fechou os olhos. Via-se a tomar banho nas águas mornas da baía. Havia lua. Um golfinho brincava-lhe com os cabelos que já não eram dela mas do mar. O golfinho a enredar-se neles, aturdido, sufocado. Ela a sentir que mais valia salvar o golfinho e perder os cabelos.
Despertou-a um murmúrio:
- 'Madame', gostaria que me ajudasse... A verdade é que já não aparecem clientes com penteados assim...
No ar, um silêncio espesso como nódoa de brilhantina.
Veio desfazê-lo a voz da mulher:
- Corte a trança. Faz-me tanto calor ultimamente.
O homem hesitou. Fixou o espelho.
A expressão dela era calma:
- Corte.
Ele pegou nas tesouras. A mão tremia-lhe como se pela primeira vez fizesse aquilo. Não compreendia nada. Não alcançava tamanho capricho.
Um ruído monótono, talvez o do bicar do papagaio no poleiro de lata, sublinhava, irritante, o zumbido dos secadores.
Dobrados os cabelos na toalha, as tesouras rangeram. Não demorou um minuto. Ouviu-se um suspiro.
Sem palavras, ele tomou um papel e embrulhou a trança.

A empregava escovava o vestido de 'madame'. O semblante do homem era intrigado, sério, e de desgosto. Podia-se imaginá-lo, em casa, a contar de uma cliente incompreensível que lhe dera tanto trabalho com os cabelos compridos, para acabar, inesperadamente, por os mandar cortar.
A trança, a esplêndida trança que de tão preta parecia azul, agora um despojo sem vida no retalho de papel pardo, a trança que o cabeleireiro entregava à dona.
Desta vez cabia-lhe a ela corar. Seria que ele não percebera? E, no entanto, aquela era sem dúvida a cabeça de um deus.

Na rua, o vento da noite veio abraçá-la. Tão bom essa carícia fresca, odorosa de sal, na pele, na carne.
Negros, rostos confundidos com as trevas, voltavam do trabalho aos magotes, conversando em quimbundo. As negras traziam filhos às costas. Os holofotes dos carros acendiam-lhes brilhantes nas órbitas, na tez suada.
Devagar, e de trança na mão, a mulher seguia como sem rumo. E o seu gesto rimava com as sombras, com o mistério da hora, com as coisas que não têm explicação.

[Maria Ondina Braga, «A Rosa-de-Jericó, contos escolhidos», Caminho, p.119-123]

25/01/10

Versos de frio

«Deixei que viesses
e para mim tangesses
a aliciante lira
da tua mentira.

Deixei que viesses
e que me prendesses
nos laços doirados
dos nossos pecados.

Deixei que viesses,
não por que te amasse.
Foi para que morresses
e eu não te chorasse.»


[Maria Ondina Braga, «A Rosa-de Jericó, contos escolhidos», Caminho, p.13]

13/01/10

O 13

«Talvez porque nascida numa sexta-feira dia 13, costumava interrogar-me se tal não teria interferido em meu pai perder o emprego. Infantis essas minhas congeminações e esses medos. A adolescência. Era a adolescência. Idade parece que procípia a nos supormos a mais no mundo. Um "a mais", quanto a mim, o mesmo que "mal-grado meu".
Ana falava de como o marido chegara cedo, naquela manhã, e com um ar abatido, se deixara cair no cadeirão do quarto e escondera a cara nas mãos: "Despedi-me... Estou desempregado.»
Era uma empresa bancária particular que recebia dinheiro em depósito e fazia empréstimos. Empresa pequena. Além de meu pai, o contabilista, um manga-de-alpaca tc-tc à máquina, e o chefe sujeitinho tão rude como refalsado. O pai propusera aumento de salário, trabalhava duro e ganhava uma ninharia, impossível continuar em semelhantes condições. O patrão, no entanto, a desconversar, a trocar-lhe as voltas, cínico, como se não se tratasse de assunto sério. Discutiram em seguida, conquanto que em vão. Desesperado, por fim, o guarda livros, largando a pasta no tampo da secretária e envergando o casacão, saiu porta fora.
Na poltrona aos pés da cama da mulher, arquejava, José. Errara, quando Deus quer... Devia ter considerado, pensado melhor, não se precipitar. Que afinal a família a crescer - e ainda bem, adorava crianças -, a crescer a família e os encargos, e ele, desgraça das desgraças, desempregado! Levantava-se. Tornava a sentar-se. Andava de um lado para o outro, pálido, perturbado. Ana a tranquilizá-lo. "Ora, tu tens carteira profissional." E conhecedor do ofício como poucos, e conceituado em toda a cidade, colocações não haviam de lhe escassear. Pegando-lhe na mão, afagava-o, a companheira. A mão muito branca, com anel de cachucho: um brilhante que, esfregado em flanela de lã, secava, o mesmo que dizer sarava um terçol num olho.
Chamando depois a empregada, a parturiente pediu-lhe que fizesse um chá. Chá de macela. Macela-de-S.-João, quinze flores para dois quartilhos de água a ferver e cinco minutos a abrir à cor. Tomaram então os dois a tisana por entre um total silêncio. Com o abalo, para mais após o parto, Ana começava a sentir-se indisposta, latejavam-lhe as fontes, sobreveio-lhe febre ao entardecer.
Eu tinha vindo ao mundo na véspera, 13 de Janeiro.
O tio, que na ocasião se encontrava em Lisboa, a falta que Luiz ali não fazia. Cunhados muito unidos, muito bem dados, esses. Fosse qual fosse o problema, o aperto, nenhum deles dispensando o parecer do outro.
(...)
Tempo em que as superstições, o que eram as superstições senão o pressentimento do que havia de vir e o sobreaviso? Nesse tempo e ainda hoje. Intervenção, aí, dos astros, dos elementos, da própria Natureza. Quando não da hora em que se nasce, do local onde se vive, da casa que se habita: o lado para o qual abre a porta da rua, as sombras, os ecos, as memórias da casa.»  


[Maria Ondina Braga, «Vidas Vencidas», Caminho, p.71-72 e 74]

Maria Ondina Braga nasceu no dia 13 de Janeiro, há setenta e oito anos, em Braga. Ao Ernane C.,  que teve a gentileza de chamar a minha atenção para este facto, aquele abraço!

23/12/09

Foi uma tristeza...

«Foi uma tristeza nova a que ontem me visitou na casa de chá, no meio das minhas amigas macaenses. Estava connosco um moço que tinha graça, e ríamos. Falou-se de jogo, de dança, de papagaios. Nas outras mesas, mulheres e homens metropolitanos, macaístas, um ou outro chinês. No ar, música suave. A tarde tombava.
E eu a meditar na minha tristeza. Fazia o seu exame enquanto contava do papagaio da costureira em Luanda, a receber as senhoras à porta: «Entra, meu bem, estás bonita!... Que material!» Os companheiros da mesa acharam engraçado, puseram-se a repetir o palrar do pássaro.
A minha tristeza passava a fronteira envidraçada do salão, seguindo rua além, e, atrás dela, qual vestido de cauda, um rasto de desolação.
Sinto-me agora frequentemente cínica, egoistamente triste, mas ontem foi diferente - um sentimento calmo e fundo, tão fundo que fiquei abismada diante dele, tão calmo que me vi a aceitá-lo, humilde, como o lavrador aceita a seca ou a monção.
A minha tristeza enchia a sala, o largo lá fora, o próprio céu; pousava-se em todas as coisas; era tudo. Desistir de mim, ceder, entregar-me a ela, parecia a única solução. Não sei explicar, tratava-se de um grande problema. Não era só eu, o mundo inteiro. Um acontecimento inevitável, igual à morte.
Acreditei que todas aquelas pessoas estavam tristes comigo, sem mesmo o saberem - gente que ria e que contava histórias de papagaios. O próprio Deus, longe ou perto, tinha de ser um Deus triste. Cheguei a ver um halo de tristeza aureolando a cabeça de cada um, e todas as nuncas vergarem ao peso da fatal eleição.
As horas corriam. A noite fechou-se. Despedimo-nos.
Já na rua, ao dobrar da esquina, um homem embargou-me o passo.
Era novo, esguio, de olhos cinzentos. Vi-lhe a cor dos olhos quando acendeu o isqueiro para o cigarro, e vi, no escuro, a chama trémula dar-lhe às pupilas claras tons de pérola. Falou, mas as palavras não lhas fixei. Guardei, sim, esta cena: a minha tristeza a abraçá-lo, longa, carinhosamente, do jeito que os homens gostam de ser abraçados.
Não sei o tempo que durou aquilo, nem me lembro de mais nada. Só sei que, ao atravessar a rua para entrar em casa, o brilho dos olhos de pérola se repetia nas pedras da calçada, à luz da lua

[ Maria Ondina Braga, «Estátua de Sal», Ulmeiro, p.36-37]    

10/12/09

A xícara

«Extraordinário como as coisas, até as mais simples, podem comunicar felicidade ou tristeza. Uma vivência longínqua fica-lhes colada para sempre e basta, assim, a sua presença para no-la fazer reviver. Era em Angola e eu estava de visita àquela família.
D. Eugénia, a dona da casa, pusera a mesa para o pequeno-almoço: o pão, a manteiga, os bules do café e do leite. Tudo comum, conhecido de cada manhã, excepto a xícara. Esta, especial, com uma paisagem no bojo e um pires alongado em forma de palmatória onde caberiam torradas ou uma fatia de bolo.
E senti uma pancada na porta fechada das minhas lembranças.
A casa paterna abria-se diante de mim, adolescente, e a mãe, pálida, na cama, tomava o leite pela xícara de louça fina, tão fina que se via a bebida descendo lentamente.
Dias infelizes esses em que a mãe estava doente, mas aquela recordação era boa até às lágrimas: as cortinas de renda no quarto sombrio, o cheiro doce do chá de tília, o anoitecer penoso como dor física, as palavras que se diziam e que soavam sempre absurdas.
Na cabeceira da cama, um rosário de madeira, tão comprido que se diria de frade franciscano, e no canto sobre o qual a porta abria, a mancha clara do oleado novo a remendar o antigo que se tinha rompido.


Agora, D. Eugénia admoestava as crianças, contava de planos caseiros, de desavenças com os criados.
Fora, a manhã ia alta. Percebia-se o calor por entre as persianas semi-cerradas.


De novo a casa paterna. (A xícara, a única coisa viva ali, e as pessoas meros objectos decorativos.) Ser-me-ia fácil aspirar o aroma das maçãs camoesas no armário da roupa, repetir as orações que nesse tempo rezava ao deitar.
No espelho da cómoda, grande, oval, a minha imagem aparecia nítida e esplêndida. Nunca mais depois encontrara espelhos iguais aos de casa. Sem defeito, aqueles. As feições das pessoas reflectiam-se lá distintamente marcadas. Os espelhos das casas dos outros, os espelhos das pensões, os espelhos dos «lares», eram sem categoria todos, e a gente surgia neles miseravelmente vulgar.
Ainda a figura da mãe: face definhada, cabelo grisalho, o corpo recostado em almofadas. Deus meu, como parecia velha! Tivera essa surpresa uma tarde, ao olhar para o espelho da cómoda defronte do leito. A morte insinuava-se através do cristal.


Um dos meninos pediu o urso amarelo. A dona de casa chamou o negro que veio da cozinha a limpar as mãos ao avental.
Numa tacinha de vidro, na mesa, bolachas cobertas de açúcar areado.
E a intimidade crescia como massa de pão a levedar.
Na casa de hóspedes onde vivia, tinha eu o mesmo café com leite em bules de metal, porém a chávena, de faiança branca, bordos grossos, letras azuis a marcar.
Que importava que aquela terra fosse argilosa e quente, que as pessoas em redor me não pertencessem nem pelo sangue nem pela tradição, se de repente me encontrava na porcelana da xícara?
Os dedos tremiam-me.
Para lá da vida estava a minha gente. Os que amara tinham a pouco e pouco atravessado o espelho. Sabia que não eram mais meus, mas podia ver-lhes a imagem, lembrava-os, acreditava neles. Por vezes possuía-os em sonhos - uma espécie de revelação do mundo da morte em que cada um se erguia solene, indiferente, superior.


O centro da mesa com flores artificiais esta prestes a ser derrubado por um dos pequenos. A mãe ralhou. A criança foi acabar a refeição na cozinha.
Lá fora, o pregão da Notícia. Passos na escada. D. Eugénia interrompeu a torrada. O jornal de domingo trazia-lhe sempre certa excitação.


Outros passos. Estes ritmados, firmes. Fazia escuro e vinham da rua. Ao entrar o corredor o seu som enfraquecia.
Nas paredes do quarto a chama da lamparina era tonta, dançando.
Murmúrio de vozes. A doente suspirava.
Ele trazia consigo o hálito da noite, a gabardina rangia no corpo alto, o rosto vincava-se de preocupação.
Mas o afastar dos passos isso é que jamais poderia ser esquecido.
E os dias passados voltavam a passar ali, ao mesmo tempo lúcidos e indefinidos, como se nunca os tivesse vivido de todo. Restava-me deles um amargor e a solidão que se me agarrara ao peito como hera a um muro.


O calor enchia já a sala. Alguém me ofereceu um leque. O negro veio de dentro com recado do patrão para se ir para a praia. Toda a gente se ergueu e as crianças alvoroçaram-se.
De tão pesado, o ar bem podia ter feito estalar a porcelana da xícara



30/10/09

Vidas vencidas

«Que eu, toda triste, acho que não sou. O certo é que tanto por mim mesma como pelo próximo, sei mais de tristeza que da alegria. Sou assim como se, dia a dia, me defrontasse com a figura do desengano. Mais até talvez que desengano. Da destruição.
E eis que me acode agora à ideia folhear um antigo caderninho de notas e revelar aqui as minhas juvenis reflexões: "Sou como a Fénix da lenda. Morro e ressuscito. Morro não em ninho de chamas olorosas mas sim na sequidão de um deserto. Que do meu coração quebrado, o renascimento me vem das histórias que crio. As vidas das histórias."
De resto, o enfado das rezas, nessa idade. Pior que enfado, esgotamento. Preces desatentas, as minhas, devido ao peixe dourado do aquário, os círculos que o peixinho desenhava, para trás e para diante, à volta do vidro. Também aos quatro continentes no tecto da sala: Europa, Ásia, África, América. Tão velha a casa que, ao ser construída, decerto não se conhecia ainda a Oceânia.
'Perdoai-nos, Senhor, as nossas ofensas como nós perdoamos'... Rezava-se.
E eu que, então, perdoava tudo. Não hoje, que já sofri de mais.
A ladainha de Nossa Senhora, a criada Elisa quem a recitava num latim estragado: 'Túrris ebúrnea... Janua Caeli...' E nós: 'ora pro nobis, ora pro nobis'. E logo ela! Que entenderia de tal língua? O que seria, afinal, tanto para ela como para nós, aquela arremedada melopeia? Rezava-se à noite e às escuras, para se poupar electricidade.
Na Avenida, contudo, os candeeiros da iluminação pública. Quando não lua cheia na abóbada celeste. Parecia, porém, que se via melhor sem luz. Os rebrilhos do peixe na escuridão líquida e límpida. Os baixos-relevos em estuque no tecto.
Depois de terminadas as orações, a mãe inquieta por causa da galinha de choco na adega. Nem era para menos. Uma semana inteira a pedrês sem sequer engolir um grão. De febre? De fastio? Ai se amanhã de manhã a encontrava morta! Os pintainhos prestes a picar os ovos. Santantoninho!»

Pantha rei

  Nenhum homem consegue banhar-se duas vezes no mesmo rio .  Porque não é o mesmo homem, nem é o mesmo rio. Tudo flui.    Heraclito, em vers...