02/10/09

Não posso adiar o amor


[imagem da Nasa]

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração
.

[ António Ramos Rosa ]

01/10/09

...le verbe aimer...

Un baiser, mais à tout prendre, qu'est-ce ?
Un serment fait d'un peu plus près, une promesse
Plus précise, un aveu qui veut se confirmer,
Un point rose qu'on met sur l'i du verbe aimer;
C'est un secret qui prend la bouche pour oreille,
Un instant d'infini qui fait un bruit d'abeille,
Une communion ayant un goût de fleur,
Une façon d'un peu se respirer le coeur,
Et d'un peu se goûter, au bord des lèvres, l'âme !


[Edmond Rostand, «Cyrano de Bergerac»]

Fora da medida

Naquela hora em que chorei, vexada, sozinha, sentada, a meio da tarde?
É sempre assim que se ressumam as duas ou três lágrimas presas, de finalização de um sentimento... Dos rápidos sentimentos brincados, que mal têm significação, que nos atribuímos por desporto amargo.
É verdade! Eu gosto de pensar, mas à custa dos outros, à custa dos seus movimentos, do seu jogo de vida...
Mas furtam-mo, furtam-mo!
Furtam-mo desta maneira: acham-me imaleável para tomar nele uma boa, uma airosa e consentânea parte.
Sou dura, abrupta. E tão dura quanto repentista, simplória, ingénua, desprevenida. Acompanho mal... atribuo fora da medida. E a uma hora do dia, calha à tarde, calha à noite, as minhas duas lágrimas de liquidação vêm-me.
Tenho um círculo de solidão! Nada o preenche. E o pouco que nele entra, sai... Sai escorraçado. Sempre indigno de lá ter entrado.
Mas afinal, o que ontem deixei por dizer?
Este assunto do R. cansa-me. De todas as cores que teve, já quase não tem nenhuma.
As pessoas afastam-se de nós, nós despegamo-nos delas... e o que havia a dizer, desfez-se!
Às vezes penso, pensava: quem importa aqui?
Eu... amolecida e curiosa, desperta, depois deprimida? Talvez.
Da pessoa dele, o essencial escapou-me. É isso que me desgosta.

[Irene Lisboa, Solidão II, Ed. Presença, p.78]

29/09/09

No fim

«Estava nisto quando recebo um telegrama de Tina - sua mãe morreu. Ou antes, não recebi, eu estava no jornal, vim já tarde para casa. Foi o Miguel que o recebeu e mo meteu entalado no disco do telefone. Sua mãe morreu - Tina. (...) Estarei triste? Não sei. Ou antes. De vez em quando a súbita iluminação que estou mais só. Reinventar a vida desde onde já a reiventara. Mas provisoriamente. (...) Porque eu queria uma relação clara com o facto da morte da minha mãe. Não tenho. Uma relação que passasse através do mito convenção parece bem. Não o sei. E todavia estou triste. Sofro. Mas não sei em que sítio de mim o sofrimento é verdadeiro como num pôr do Sol o Sol, acima ou abaixo do horizonte, e entretanto cheguei à estação.» [Vergílio Ferreira, «Até ao Fim», Quetzal, p.109-110]

26/09/09

O último instante

«Quando sentiu que estava morrendo, meu avô Celestiano chamou a mulher e pediu-lhe:
- Deixa-me fitar teus olhos!
E ficou, embevecido, como se sua alma fosse um barco deitado num mar que eram os olhos de sua amada.
- Tens frio?, perguntou ela vendo-o tremer.
- Não. És tu que estás a chorar.
- Chorar, eu? Começou foi a chover.
»

[Mia Couto, «Mar me quer», Caminho, p.63]

21/09/09

Esse negro corcel, cujas passadas
Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
E, passando a galope, me aparece
Da noite nas fantásticas estradas,

Donde vem ele? Que regiões sagradas
E terríveis cruzou, que assim parece
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas?

Um cavaleiro de expressão potente,
Formidável, mas plácido, no porte,
Vestido de armadura reluzente,

Cavalga a fera estranha sem temor:
E o corcel negro diz: "Eu sou a morte!"
Responde o cavaleiro: "Eu sou o Amor!"


[Antero de Quental]

19/09/09

«A dez mil quilómetros de ti»

«Chegara ao escritório, mal tivera tempo de pousar a mala ou de despir ao menos o casaco, quando a viu, no tampo envidraçado da mesa, entre notificações e umas quantas inutilidades, uma carta, com a tarja de correio aéreo, as marcas da distância enrugadas no envelope.
Sentou-se, e na ânsia controlada que era o seu modo de sobreviver ao espanto, leu-a como se fosse alheia:


"Ouve-me. Ontem parece que acabou tudo o que me trouxe aqui. Vi-me como se a um espelho. Um sentimento de isolamento, o desejo de não estar, a incapacidade de fruir com os outros a autenticidade da vivência que eles gozam e lhes basta, entre a infâmia da intriga permanente e a indiferença face à miséria que nos circunda.
Hoje, estonteado pela luz, tentei sair à rua. Qual toupeira cega, não cheguei além do primeiro quarteirão empoeirado. O sol, o inclemente sol, perseguindo-me a cabeça, o zumbido de insectos alados anunciando um apetite voraz pelo meu sangue, hordas de crianças, pedintes, míseras, pertinazes na arte de perseguir por uma moeda, batedores do alheio, o estrangeiro como uma mina e o eldorado e, em tudo, um halo de cinzas, de destruição, de morte ainda fresca. Cambaleando de dor, regressei.
Dizem-me que é uma nação a fazer-se. Dizem-me que no ar condicionado se redigem prodígios de arquitectura legal. Na rua, ostensivas e arrogantes, patrulhas motorizadas, carros de combate e camiões, provocadora, uma parabólica esventrando os céus, sereias funcionárias estiradas nas praias, o luxuoso exibicionismo na areia suja, cochichos de fervilhante conspiração, de doentia maledicência entre copos, corpos e comezainas.
Não sei por quanto tempo ficarei, nem sei já se vale a pena aquilo que faço.
Sei que há um «eu» que me trouxe aqui, sem ao menos o conforto de uma ideologia que sinta minha, de uma causa a que chame própria, de uma pátria que me reclame. Patriota de pátrias adoptadas, pária por vocação, estrangeiro exilado de si, que nenhuma família em rigor reclama como seu.
Mas conheço também aquele que nestas linhas se confunde e se lamenta e tenta mostrar que perdido está, trancado num quarto de hotel, desejando que não toque o telefone, que nada suceda, que ninguém o convide.
O momento agónico da hora do almoço aproxima-se e com ele a descida necessária à casa de jantar. Fosse eu, nesse local de requinte, qual deck elegante de um navio, o solitário passageiro taciturno, aquele que a ninguém fala e de quem ninguém se aproxima, absorto na ausência como se num livro se concentrasse, indiferente e alheio. Pudesse, ao menos, essa categoria espectacular e trágica do homem só despertar, por um momento que fosse, o primeiro impulso do amor alheio que é a comiseração e a simpatia. Mas, trancado aqui e do mais isolado, resta-me o mundo fictício da minha literatura real, suas personagens e a promiscuidade dos seus actores.
Dei comigo esta manhã, como se no cansaço do longínquo tivesse encontrado a incapacidade de regressar, no cais do meu próprio desembarque eu fosse aquele que acena aquém da viagem, um interminável adeus a ter ficado.
Esgota-se-me a capacidade de sofrer, o absurdo da condição de homem dividido, estendendo a mão como aquele que, aqui por uma côdea de afecto, ali por um halo de ternura, numa esquina incógnita a aguardar e exaurir à saciedade, esgotados os sentidos, conseguisse com isso sobreviver.
Longe da pátria onde não nasci, do lar que nunca tive, resta-me o fio desta correspondência e a esperança morna que a recebam.
Talvez tudo tenha envelhecido a ponto de não haver mais do que, amanhã, o alçar a âncora lodosa de um cargueiro, o chiar retesado dos cabrestos e seu cordame, a maré a subir e com ela a hora de zarpar, orçando a bombordo primeiro em marcha a ré, e força a vante rumo ao norte mítico, ao equador da tranquilidade, à náusea de semanas apenas com o mar por companhia.
Recolheria pela tarde ao camarote. Talvez eu te tivesse então e a nudez reconfortante do teu corpo, a meu lado, na ânsia de dormir, dormir só e tão-somente, que há dias em que um homem desespera de si e se cansa do resto.
Ouve-me. Parece-me que tudo acabou. Ontem vi-me, como se num álbum de fotografias recordasse o longíquo parente, virando a folha, esquecido o nome, a memória ténue. Ontem vi-me ali, irreconhecível e de mim próprio incompreendido.
Em breve fecha a mala postal. Quando me leres sabe-se lá como estarei. Os deuses apiedam-se muitas vezes abreviando o mal real com a embriaguez do sonho. Bebamos pois à vida, sejamos do mais esquecidos e do resto indiferentes, no confinado espaço, a cadência salgada do mar na escotilha, batendo o ritmo do coração, os solavancos dos nossos corpos em viagem.
Espera por mim. Peço-te que leias os Laços de Família. É o que nos falta. Seremos uma, se eu voltar."


Muito tempo depois, relida a carta teria a certeza do que nela se dizia: o amor doloroso, feito da ausência ansiosa, pareceu-lhe, enfim, a felicidade possível, o máximo de todos os mundos. Momentos depois estaria na rua, todo o mundo de obrigações quotidianas à sua espera, daquelas que não fazem história nem mudam o mundo. Um desejo de que aquele infinito momento se pudesse prolongar tomou conta de si, o mar à vista, o céu a confundir-se com ele
[José António Barreiros, «Contos do desaforo», Ed. Presença, p.54-57]

Confesso...

... o «Adágio» é




[ seguindo o método do «Direito e Avesso», optei por ir nomeando um a um... :-) ]

17/09/09

Notas ao acaso

«Sofro a necessidade do amor, penso às vezes. E creio senti-la.
Sofro do amor sem partilha, decepcionado. Sofro de desânimo, de desejo, de desalento; sofro
.
Aperta-me, comprime-me a secura dos outros. O seu egoísmo, a sua insociabilidade, ou a sua falsa, interesseira sociabilidade, a sua dureza, a sua aridez, a sua volubilidade! Sinto-me repelida por tudo isto.
E não serei... não serei...
Haveria jamais amor que me contentasse?
Correspondência para a minha pobreza e ânsia?

Mas conquistada ela - com o que não sonho - não me sentiria liberta para me deslocar sempre, em corpo e em espírito, em realidade e em desejos?»
[Irene Lisboa, Solidão II, p.55]

14/09/09

A perfeição

«O Teo é perfeito e isso é terrível e luminoso no meio da imperfeição humana. Ele é perfeito por fora, o nosso filho, mas sobretudo por dentro, onde deve ter uma alma com uma exactidão e firmeza de geometria. Eu não sei se ele tem dúvidas, mas a perfeição também é um hábito com que se insiste e então não as tem.» [Vergílio Ferreira, «Em nome da Terra», Quetzal, pág.248]


«Um homem verdadeiramente bom é recto, como um quadrado, sem irregularidades» [ Aristóteles, «Ética a Nicómaco»]

Lembro-me de ti...

  Lembro-me de ti... Na escuridão profunda da memória, o teu olhar ilumina a estrada percorrida na história da minha vida. E sinto, em mim, ...