24/12/09

Onde estiver o corpo morto é que se juntam os abutres

«Alguns fariseus perguntaram a Jesus quando é que chegava o reino de Deus. "O reino de Deus não vem como uma coisa que se possa observar", respondeu-lhes. "Não se poderá dizer: Está aqui ou está acolá. Na verdade, o reino de Deus já está no vosso meio."
Depois disse aos discípulos: "Lá virá o tempo em que desejarão ver ao menos um só dos dias do Filho do Homem e não poderão. Alguns hão-de dizer-vos: 'Olha, está aqui', ou 'está acolá'. Mas não vão atrás desses boatos, porque o Filho do Homem virá no seu dia próprio como um relâmpago que ilumina o céu dum extremo ao outro. Mas primeiro tem ele que sofrer muito e ser rejeitado pelas pessoas deste tempo.
Tal como aconteceu no tempo de Noé, assim vai ser nos dias do Filho do Homem. Comiam, bebiam e casavam-se, até ao dia em que Noé entrou na arca. Depois veio o dilúvio e morreram todos. Assim aconteceu também no tempo de Lot: comiam, bebiam, compravam, vendiam, plantavam e construíam. Mas no dia em que Lot saiu de Sodoma, caíu do céu fogo e enxofre sobre a cidade e morreram todos. Assim sucederá no dia em que o Filho do Homem aparecer.
Nesse dia, quem estiver no terraço não desça a casa para tirar de lá seja o que for, e se estiver no campo não volte para trás. Lembrem-se da mulher de Lot! Aquele que quiser salvar a vida perde-a e o que a perder, salva-a. Digo-vos que nessa noite estarão duas pessoas na mesma cama: uma será levada e a outra fica. Duas mulheres estarão juntas a moer farinha: uma será levada e a outra fica. Dois homens estarão no campo: um será levado e o outro fica.
" Nessa altura os discípulos perguntaram-lhe: "E onde vai ser isso, Senhor? "Onde estiver o corpo morto" replicou ele, "é que se juntam os abutres".» LUCAS 17,16-18,3

23/12/09

Foi uma tristeza...

«Foi uma tristeza nova a que ontem me visitou na casa de chá, no meio das minhas amigas macaenses. Estava connosco um moço que tinha graça, e ríamos. Falou-se de jogo, de dança, de papagaios. Nas outras mesas, mulheres e homens metropolitanos, macaístas, um ou outro chinês. No ar, música suave. A tarde tombava.
E eu a meditar na minha tristeza. Fazia o seu exame enquanto contava do papagaio da costureira em Luanda, a receber as senhoras à porta: «Entra, meu bem, estás bonita!... Que material!» Os companheiros da mesa acharam engraçado, puseram-se a repetir o palrar do pássaro.
A minha tristeza passava a fronteira envidraçada do salão, seguindo rua além, e, atrás dela, qual vestido de cauda, um rasto de desolação.
Sinto-me agora frequentemente cínica, egoistamente triste, mas ontem foi diferente - um sentimento calmo e fundo, tão fundo que fiquei abismada diante dele, tão calmo que me vi a aceitá-lo, humilde, como o lavrador aceita a seca ou a monção.
A minha tristeza enchia a sala, o largo lá fora, o próprio céu; pousava-se em todas as coisas; era tudo. Desistir de mim, ceder, entregar-me a ela, parecia a única solução. Não sei explicar, tratava-se de um grande problema. Não era só eu, o mundo inteiro. Um acontecimento inevitável, igual à morte.
Acreditei que todas aquelas pessoas estavam tristes comigo, sem mesmo o saberem - gente que ria e que contava histórias de papagaios. O próprio Deus, longe ou perto, tinha de ser um Deus triste. Cheguei a ver um halo de tristeza aureolando a cabeça de cada um, e todas as nuncas vergarem ao peso da fatal eleição.
As horas corriam. A noite fechou-se. Despedimo-nos.
Já na rua, ao dobrar da esquina, um homem embargou-me o passo.
Era novo, esguio, de olhos cinzentos. Vi-lhe a cor dos olhos quando acendeu o isqueiro para o cigarro, e vi, no escuro, a chama trémula dar-lhe às pupilas claras tons de pérola. Falou, mas as palavras não lhas fixei. Guardei, sim, esta cena: a minha tristeza a abraçá-lo, longa, carinhosamente, do jeito que os homens gostam de ser abraçados.
Não sei o tempo que durou aquilo, nem me lembro de mais nada. Só sei que, ao atravessar a rua para entrar em casa, o brilho dos olhos de pérola se repetia nas pedras da calçada, à luz da lua

[ Maria Ondina Braga, «Estátua de Sal», Ulmeiro, p.36-37]    

22/12/09

Paradoxo

«Dizes então que vais fazer do Certo o teu mestre e livrar-te do Errado, ou fazer da Ordem o teu mestre e livrar-te da Desordem? Se o fizeres, então não percebeste (...). É impossível, obviamente». Chuang Tsu

«Se eu disser que se comportam como partículas estou a dar uma impressão errada; o mesmo se disser que se comportam como ondas. Elas comportam-se de forma própria e inimitável, no que poderíamos chamar, tecnicamente, uma forma mecânica quântica. Comportam-se de uma maneira que é algo nunca antes visto». Richard P. Feynman

[in «Einstein e Buda - palavras comuns», editor Thomas J.Mcfarlane, estrela polar, p.71]

21/12/09

Receita para fazer um herói

Tome-se um homem
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.

Serve-se morto.


[Reinaldo Ferreira, «Nunca Mais é Sábado - Antologia de Poesia Moçambicana», org. e prefácio de Nelson Saúte, Dom Quixote, p.119]

17/12/09

Talvez...

«Talvez eu pudesse ter dado a quem nos lê um excerto do teu passado mas não o fiz, como uma fotografia que se retira da sala porque o fotografado morreu ou deixou de existir no nosso coração e ele nota que o mataram porque deixou de estar ali e matamo-lo assim mesmo aos olhos de quem estiver e ele que veja porque os mortos não têm olhos para ver que os mataram, a minha fotografia estava ali e já não está e eu finjo que não dói fazendo de conta que não vi e estavam tão contentes quando disseram «olha, querido, tu ali!» e eu tão feliz.
Mas não te dei, Manuela, e és agora uma sombra, ténue, inerte, pouco mais és, Manuela, enquanto personagem deste livro que a tua função, não tens mais biografia do que o que fazes como sobrevivência e este acanhado lugar onde a exerces, não há mais pessoa em ti do que o emprego, nem mais mulher porque não há ninguém para quem o ser».

10/12/09

A xícara

«Extraordinário como as coisas, até as mais simples, podem comunicar felicidade ou tristeza. Uma vivência longínqua fica-lhes colada para sempre e basta, assim, a sua presença para no-la fazer reviver. Era em Angola e eu estava de visita àquela família.
D. Eugénia, a dona da casa, pusera a mesa para o pequeno-almoço: o pão, a manteiga, os bules do café e do leite. Tudo comum, conhecido de cada manhã, excepto a xícara. Esta, especial, com uma paisagem no bojo e um pires alongado em forma de palmatória onde caberiam torradas ou uma fatia de bolo.
E senti uma pancada na porta fechada das minhas lembranças.
A casa paterna abria-se diante de mim, adolescente, e a mãe, pálida, na cama, tomava o leite pela xícara de louça fina, tão fina que se via a bebida descendo lentamente.
Dias infelizes esses em que a mãe estava doente, mas aquela recordação era boa até às lágrimas: as cortinas de renda no quarto sombrio, o cheiro doce do chá de tília, o anoitecer penoso como dor física, as palavras que se diziam e que soavam sempre absurdas.
Na cabeceira da cama, um rosário de madeira, tão comprido que se diria de frade franciscano, e no canto sobre o qual a porta abria, a mancha clara do oleado novo a remendar o antigo que se tinha rompido.


Agora, D. Eugénia admoestava as crianças, contava de planos caseiros, de desavenças com os criados.
Fora, a manhã ia alta. Percebia-se o calor por entre as persianas semi-cerradas.


De novo a casa paterna. (A xícara, a única coisa viva ali, e as pessoas meros objectos decorativos.) Ser-me-ia fácil aspirar o aroma das maçãs camoesas no armário da roupa, repetir as orações que nesse tempo rezava ao deitar.
No espelho da cómoda, grande, oval, a minha imagem aparecia nítida e esplêndida. Nunca mais depois encontrara espelhos iguais aos de casa. Sem defeito, aqueles. As feições das pessoas reflectiam-se lá distintamente marcadas. Os espelhos das casas dos outros, os espelhos das pensões, os espelhos dos «lares», eram sem categoria todos, e a gente surgia neles miseravelmente vulgar.
Ainda a figura da mãe: face definhada, cabelo grisalho, o corpo recostado em almofadas. Deus meu, como parecia velha! Tivera essa surpresa uma tarde, ao olhar para o espelho da cómoda defronte do leito. A morte insinuava-se através do cristal.


Um dos meninos pediu o urso amarelo. A dona de casa chamou o negro que veio da cozinha a limpar as mãos ao avental.
Numa tacinha de vidro, na mesa, bolachas cobertas de açúcar areado.
E a intimidade crescia como massa de pão a levedar.
Na casa de hóspedes onde vivia, tinha eu o mesmo café com leite em bules de metal, porém a chávena, de faiança branca, bordos grossos, letras azuis a marcar.
Que importava que aquela terra fosse argilosa e quente, que as pessoas em redor me não pertencessem nem pelo sangue nem pela tradição, se de repente me encontrava na porcelana da xícara?
Os dedos tremiam-me.
Para lá da vida estava a minha gente. Os que amara tinham a pouco e pouco atravessado o espelho. Sabia que não eram mais meus, mas podia ver-lhes a imagem, lembrava-os, acreditava neles. Por vezes possuía-os em sonhos - uma espécie de revelação do mundo da morte em que cada um se erguia solene, indiferente, superior.


O centro da mesa com flores artificiais esta prestes a ser derrubado por um dos pequenos. A mãe ralhou. A criança foi acabar a refeição na cozinha.
Lá fora, o pregão da Notícia. Passos na escada. D. Eugénia interrompeu a torrada. O jornal de domingo trazia-lhe sempre certa excitação.


Outros passos. Estes ritmados, firmes. Fazia escuro e vinham da rua. Ao entrar o corredor o seu som enfraquecia.
Nas paredes do quarto a chama da lamparina era tonta, dançando.
Murmúrio de vozes. A doente suspirava.
Ele trazia consigo o hálito da noite, a gabardina rangia no corpo alto, o rosto vincava-se de preocupação.
Mas o afastar dos passos isso é que jamais poderia ser esquecido.
E os dias passados voltavam a passar ali, ao mesmo tempo lúcidos e indefinidos, como se nunca os tivesse vivido de todo. Restava-me deles um amargor e a solidão que se me agarrara ao peito como hera a um muro.


O calor enchia já a sala. Alguém me ofereceu um leque. O negro veio de dentro com recado do patrão para se ir para a praia. Toda a gente se ergueu e as crianças alvoroçaram-se.
De tão pesado, o ar bem podia ter feito estalar a porcelana da xícara



08/12/09

Ilusões e desilusões (1)



«Uma vez, Chuang Chou sonhou que era uma borboleta (...) 
Subitamente acordou e lá estava ele, o verdadeiro e inconfundível Chuang Chou. Mas não sabia se era Chuang Chou que sonhara ser uma borboleta, ou se era uma borboleta a sonhar que era Chuang Chou». Chung Tzu,

«Pessoas como nós, que acreditam na Física, sabem que a distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosa e persistente.» Albert Einstein

[Thomas J. Mcfarlane, «Einstein e Buda»», estrela polar, p.116 e 150]

07/12/09

Angústia II

«"Quando eu estava na angústia, invoquei-te, SENHOR, 
e tu respondeste-me;
do fundo do abismo, gritei por ti
e ouviste o meu pedido.
Atiraste comigo para as profundezas do mar
e a corrente envolveu-me;
as tuas ondas e as tuas vagas
passaram por cima de mim.
Pensei que me tivesses expulsado 
para longe da tua presença.
Como poderia voltar a ver
o teu santo templo
As águas cobrem-me até à garganta,
o abismo engoliu-me,
as algas enrolaram-se-me à cabeça.
Desci até aos alicerces das montanhas
e os ferrolhos da morte fecharam-se atrás de mim para sempre.
Mas tu, SENHOR, fizeste-me sair vivo do sepulcro.
Quando eu estava a desfalecer,
lembrei-me de ti, SENHOR,
apresentei-te a minha oração,
que chegou ao teu santo templo.
Aqueles que adoram ídolos sem valor
quebram a fidelidade para contigo.
Mas eu, com hinos de gratidão,
hei-de oferecer-te um sacrifício
e cumprirei as minhas promessas.
Só tu, SENHOR, podes livrar-nos do perigo!"
E o SENHOR fez com que o peixe fosse vomitar Jonas em terreno firme.»

[«a Bíblia para todos - edição literária», Círculo dos Leitores, p.1026] 

 

Lembro-me de ti...

  Lembro-me de ti... Na escuridão profunda da memória, o teu olhar ilumina a estrada percorrida na história da minha vida. E sinto, em mim, ...