13/06/10

Pandora




Dantes vivia sobre a terra a raça humana
a recato da desgraça e do penoso trabalho,
e das doenças horríveis, que trazem a morte aos homens.
Mas a mulher, com suas mãos, ergueu a grande tampa da vasilha,
e dispersou-os, preparando à humanidade funestos cuidados.
Dentro da vasilha, na morada indestrutível,
abaixo do rebordo, ficou apenas a Esperança. Essa
não se evolou. Antes, já ela tornara a colocar a tampa,
por desígnios de Deus detentor da égide, que amontoa as nuvens.
Mas tristezas aos centos erram entre os homens.
Cheia está a terra de desgraças, cheios os mares.
As doenças, umas de dia, outras de noite,
visitam à vontade os homens, trazendo aos mortais
o mal, em silêncio, pois Zeus prudente lhes retirou a voz.
E assim não há maneira de evitar os desígnios de Zeus.



Hesíodo, Trabalhos e Dias, 90-105, in Hélade, Antologia da Cultura Grega, organização e tradução de Maria Helena Rocha Pereira, Guimarães, p.109.

07/06/10

A passageira clandestina


Our stowaway was not long making a niche for herself abord the ship. She prooved a good worker and a thoroughly decent sort, and pretty soon her time was fully occupied with keeping the quarters aft cleaner than they had ever been before, and teaching English and playing chess. She made herself some dresses out of an old cloth form the cabin table, and good dresses they were; and before we had been very long at the sea the sight of her sitting on the after-hatch making a hair net or a hat - she was always doing something - excited no comment at all. It was a queer experience, to have a women stowaway aboard. No one in the ship had ever heard of such a thing before, though they had read about it often enough in books.
[...]I have gone to some pains to discover what were the sailors' objection to the presence of women in their ship. I found them pretty natural. There are tree chief ones, I think. First, that the presence of one unattached woman in a ship of men is highly undesirable and sure to cause trouble, in one way or another; secondly, that the nervousness and 'intuition' of women is bad for the morale of the sailing ship; and thirdly, that the more delicate nature of woman renders her unfit for the long and the hard voyages of the sailing ship, which require a strength of character as well as a physical strength that would find a good many women out. I pooh-poohed these objections, of course - for am I not the representative of my sex? - but looking back now, I admit frankly that there is more than something in them."

Alan Villiers, The Last of the Windships, The Harvill Press, London

05/06/10

A esfinge

E nesta altura Ester a cair em si e a considerar em como andava apartada do seu próprio peito. Com isto de tomar para mim as vidas daquelas que me cercam, vou-me mudando, que sei eu? numa espécie de esfinge. A esfinge sentada à beira do caminho, um monstro de mistério e fatalidade. (...) Esfinge que não fazia quaisquer perguntas àqueles que se lhe aproximavam e muito menos os devorava. Esfinge de si mesma, Ester. (...) Ela, o seu coração trancado a sete chaves para tudo quanto significasse ternura. Por lealdade para com Xiao? Xiao, a desleal. Xiao que sumira, sem rasto nem retractação. Por lealdade para com a amiga china ou por amor próprio? Medo. E nesse instante, pondo ali Deus por testemunha, jurou que havia de encontrar-se com Lu Si-Yuan, a professora de inglês.

Maria Ondina Braga, Nocturno em Macau, Caminho, p.200




David Sylvian, Darkest Dreaming, do album Dead Bees On A Cake

03/06/10

How noteless Men, and Pleiads, stand...

Searching for Dark Matter in a Galaxy Cluster

How noteless Men, and Pleiads, stand,
Until a sudden sky
Reveals the fact that One is rapt -
Forever from the Eye -

Members of the Invisible,
Existing, while we stare,
In Leagueless Opportunity,
O'ertakeless, as the Air -

Why didn't we detain Them?
The Heavens with a smile,
Sweep by our disappointed Heads
Without a syllable -

Emily Dickinson,in «dark matter poems of space»
selecção de Maurice Riordan e Jocelyn Bell Burnell, Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, p.214


Para APS, confiando que me ajudará a entendê-lo.

01/06/10

Irmão vento

Um vento novo sucedeu rompendo
por dentro a procurar-nos um do outro.

Alberto Soares, Escrito para a noite, INCM, p.31.



30/05/10

Chuva oblíqua

vejo-te como se pode ver
através desta chuva oblíqua.

oblíquo é sempre o ângulo de onde
te vejo, por mais que procure a tua
nitidez absoluta.

(...)

Vitor Oliveira Jorge, As Arquitecturas Sanzonais, ed.Campo das Letras, p. 61


29/05/10

Faiti !



Se Ester continuava a encontrar-se com Lu Si-Yuan, como antes, quem poderia assegurar? Talvez Zac, de zeloso. Ela própria assombrada de tão seguro sigilo. E imaginava-se dona de um mundo que nada tinha a ver com estes sitiados sítios. Um mundo que nem era o Bairro do Bazar nem o Jardim de Camões, tão-pouco a Concha-da-Tartaruga em Coloane. Um mundo que tinha, sim, a ver com a chuva, as tumultuosas torrentes do céu, o chão empoçado, ela a chapinhar de sapatos na mão. Trinidad frequentemente a interferir, a meter o bedelho, a porteira, o seu aviso: "Salir con tiempo tan feo?" Corria Ester escadaria abaixo, corria, não, voava, como se, em vez de chapéu-de-chuva, empunhasse um pára-quedas. Ocasiões em que o guarda chuva se virava na rua, tal as velas de um barco nas voltas do vento. Colhia então calmamente o velame, prosseguia à deriva, cabelos desatados, o rosto de quem se desbulhasse. Momentos mágicos, esses, não fosse aquele medo. Que o medo a gente acaba também por o adoptar. Gerado nas nossas entranhas, o medo é um fruto espontâneo e espúrio. Sem medo, seríamos certamente, se não insensíveis, pelo menos estéreis.
Ocasiões em que o carro do tenente passava por ela, a salpicava de lama, o rum-um-um do motor do dois cavalos mais furioso que o trovão. E Xiao Hé Huá, por onde andaria a essa hora o Botão de Lótus Amarelo? Saudades da chinesa, Ester. Saudades de quando atravessavam, juntas, o lago da cerca do colégio, a água pelos tornozelos, vermes como pequenas cobras ocultos no lodaçal: Cuidado, se esses bichos mordem o calcanhar, fica uma chaga crónica. Já na rua principal chamava um triciclo: 'Faiti !' Escuro dentro do triciclo, escuro e quente, um cheiro a bafio, o acoite da bátega na capota. E agora como uma fantástica viagem. Através de Macau. Para além de Macau. Uma vagabundagem ao longo dos seus sentidos, ao longo de si. A sua pena de não ter a quem contar tal aventura. Que o amor, as ocorrências do amor marcam-nas a confusão. E todavia, o caminho para lá, que claro! Igual à carta fechada na gaveta da mesa dos livros, o amor, os seus enigmáticos sinais, os seus símbolos selados, uma selva. Já o homem, ele que guardava consigo o encanto da clandestinidade, completo, o homem. Ninguém decerto compreendendo, caso ela contasse. Quem sabe, Xiao? Algum dia. Assim que tornassem a dormir as noites todas, a levantar-se uma aquando à outra, a cruzarem-se manhã cedo no corredor: 'Mor... o ... ning! Tsó shan!' E, ao dejejum, diante da tigela fumegante do 'chouk' com 'tau-fu': Tome do meu chá! 'It's refreshing!' Ou em noites de Inverno, a luz apagada, os seus murmúrios por trás da cana do compartimento. Então, sim, então havia de contar-lhe tudo (tudo?), mansamente e humilde. Contar para não vir a esquecer. Que a carta era sua, podia vê-la sempre que lhe apetecesse, tactear a finura do papel de arroz, o relevo dos traços a tinta-da-china, aspirar-lhe o aroma. Ele, contudo, o autor da carta... Tão raro, ele, tão remoto. Necessário fixá-lo para que não desbotasse com o tempo, não delisse como as imagens nos retratos antigos. Mas fixá-lo em quê? Em quem? Em Xiao Hé Huá, naturalmente. Xiao que, semelhante a ele, tinha olhos estreitos e faces esmaecidas. Semelhante a ele, descera ela das montanhas do Norte, Xiao, debruçara-se sobre os precipícios, ensanguentara os pés nas fráguas. Retê-lo em Xiao. Restituí-lo a Xiao?

Maria Ondina Braga, Nocturno em Macau, Caminho,  p.168-169     

26/05/10

Maio, maduro Maio...

«O que resta é sempre o princípio feliz de alguma coisa
Agustina Bessa-LuísDicionário Imperfeito, Guimarães Editores,  p.115




Para APS

Sermões

Notícias fantasmagóricas corriam, de boca em fora, naquele domingo de Mercado, na aldeia de Estoi.
Os mortos da guerra já haviam sido condecorados, os da pneumónica já haviam sido chorados e, todos ambos, já haviam sido enterrados, pelo que, por via da caducidade deste palestral mote, urgia alcançar assunto fresco.
Quando muito, os mortos condecorados e chorados poderiam, ingrementes, dar temática para duas onças de conversa de "chacha", enquanto o padre Berucho sermoava a eucarística sermoa - pondo que esta não saísse aguardentada e de sexta-feira Santa.

Veio a pêlo esta ressalva porque as emborrachadas homilias de sexta-feira da Paixão, proferidas da caixa do púlpito, pelo padre Berucho, ajudado do Espírito Santo, tinham uma natureza e significado muito peculiares.
A proto-história desses afamados sermões começava ao lusco-fusco quando o sacerdote, assomando-se à porta da venda do Linquete, avistava os ranchos das suas devotíssimas paroquianas no acto de subirem as escadarias do templo, com o propósito de assistirem às fúnebres cerimónias do Senhor Morto. Inspirado por dois espíritos (o Santo, do Céu, e o da aguardente, da Terra) o padre, antes de retomar o robusto arrimo do balcão (comovido pela embevecedora visão das suas paroquianas a confluirem para a igreja enlutada) transmitia aos companheiros das tabernícolas fainas, ente engulhado vaticínio: "É mesmo esta noite que eu vou pôr aquele putedo todo a chorar!". 
Numa das vezes, à laia de comentário a esta promissão, o Linquete, com a aprovação expressa do auditório, conceituou: "Não se afadigue no negócio da choradeira, senhor prior, não se afadigue, olhe que 'lágrima de sermão e chuva de trovoada, caem no chão e não valem nada' !"
Um tanto melindrado, o padre Berucho, compôs a resposta adequada ao axioma rimado do céptico Linquete, através de uma tirada apologética: "Fique sabendo, sr. taberneiro, que as lágrimas choradas por conta de Nosso Senhor são sempre sentidas, nem que venham dos olhos de um crocodilo!"
Não lhe sofrendo o ânimo que esta sacerdotal asserção pudesse subsistir sem uma resposta adequada, o Blé do Barril, irrompendo de um canto escuro da locanda, meteu o seu bedelho na erudita sabatina, com o manifesto desígnio de instalar solidez na tese da 'lágrima de sermão e chuva de trovoada', tese que constituía a lídima expressão de milenar sabedoria, transmitida, de boca a orelha, por gerações sem conta.
Assim, em implemento da pretensão, o Barril falou e disse: "Antes de amanhar a geringonça que é este mal amanhado Mundo, já Deus lia, na Sua sagrada cartilha, este celestial responso: 'não cries galinhas onde a raposa mora, nem creias em lágrimas de mulher que chora!' ".    


Valério Bexiga, Histórias para boi dormir, Gente Singular editora, p. 103-104

23/05/10

Perseguindo as sombras...

Existe um deus no início, ou pelo menos no fim, de qualquer alegria.
E. M. Cioran, Do inconveniente de ter nascido, Letra Livre, p.7



Hammock - Breathturn from David Altobelli on Vimeo.
Do album "Chasing After Shadows... Living with the Ghosts" (May 18, 2010)
Los Angeles Film Festival 2010 (June)


Para ti, Mãe.

21/05/10

No princípio era o vazio

NASA, ESA, C. Evans (Royal Observatory Edinburgh), N. Walbom (STScI), and ESO



Antes de todas as coisas era o Caos, depois veio a Terra,
grande peito,
sólido e eterno assento de quanto existe,
E Eros, o mais belo dos deuses imortais, o que adoça os membros,
o que, no peito dos deuses e homens domina
o espírito e a vontade esclarecida.

Hesíodo - Teogonia, 116-132, tradução de Pinharanda Gomes

Lembro-me de ti...

  Lembro-me de ti... Na escuridão profunda da memória, o teu olhar ilumina a estrada percorrida na história da minha vida. E sinto, em mim, ...