30/11/10

Luminescência

De Ulisses ela aprendera a ter coragem de ter fé - muita coragem, fé em quê? Na própria fé, que a fé pode ser um grande susto, pode significar cair no abismo. Lóri tinha medo de cair no abismo e segurava-se numa das mãos de Ulisses enquanto a outra mão de Ulisses empurrava-a para o abismo - em breve ela teria que soltar a mão menos forte do que a que a empurrava, e cair, a vida não é de se brincar, porque em pleno dia se morre.
A mais premente necessidade de um ser humano era tornar-se humano.  

Clarice Lispector, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, Relógio D'Água Editores, p.27

Poema conjetural


Zumban las balas en la tarde última.
Hay viento y hay ceniza en el viento,
se dispersan el día y la batalla
deforme, y la victoria es de los otros.
Vencen los bárbaros, los gauchos vencen.
Yo, que estudié las leys y los cánones,
you, Francisco Narciso de Laprida,
cuya voz declaró la independencia
de estas crueles provincias, derrotado,
de sangre y de sudor manchado el rosto,
sin esperanza ni temor, perdido,
huyo hacia el Sur por arrabales últimos.
Como aquel capitán del Purgatorio
que, huyendo a pie y ensangretando el llano,
fue cegado y tumbado por la muerte
donde un oscuro río pierde el nombre,
así habré de caer. Hoy es el término.
La noche lateral de los pantanos
me acecha y me demora. Oigo los cascos
de mi caliente murte que me busca
con jinetes, con belfos y con lanzas.

Yo que anhelé ser otro, ser um hombre
de sentencias, de libros, de dictámenes,
a cielo abierto yaceré entre ciénagas;
pero me endiosa el pecho inexplicable
um júbilo secreto. Al fin me encuentro
com mi destino sudamericano.
A esta ruinosa tarde me llevaba
el laberinto múltiple de pasos
que mis días tejieron desde un día
de la niñez. Al fin he descubierto
la recóndita clave de mis años,
la suerte de Francisco de Laprida,
la letra que faltaba, la perfecta
forma que supo Dios desde el principio.
En el espejo de esta noche alcanzo
mi insospechado rostro eterno. El círculo
se va a cerrar. Yo aguardo que así sea.

Pisan mis pies la sombra de las lanzas
que me buscan. Las befas de mi muerte,
los jinetes, las crines, los caballos,
se ciernen sobre mí... Ya el primer golpe,
ya el duro hierro que me raja el pecho,
el íntimo cuchillo en la garganta.

Jorge Luis Borges, Antologia poética 1923-1977, Alianza Editorial, p.49-51

18/11/10

L'Été au Portugal

Que esperar daqui? O que esta gente
não espera porque espera sem esperar?
O que só vida e morte
informes consentidas
em todos se devora e lhes devora as vidas?
O que quais de baratas e a baratas
é o pó de raiva com que se envenenam?

Emigram-se uns para as Europas
e voltam como eram só mais ricos.
Outros se ficam envergando as opas
de lágrimas de gozo e sarapicos.

Nas serras nuas, nos baldios campos,
nas artes e mesteres que se esvaziam,
resta um relento de lampeiros lampos
espanejando as caudas com que se ataviam.

Que espera se espera em Portugal?
Que gente ainda há-de erguer-se desta gente?
Pagam-se impérios como o bem e o mal
- mas com que há-de pagar-se quem se agacha e mente?

Chatins engravatados, peleguentas fúfias
passam de trombas de automóvel caro.
Soldados, prostitutas, tanto rapaz sem braços
ou sem pernas - e como cães sem faro
os pilha poetas se versejam trúfias.

Velhos e novos, moribundos mortos,
se arrastam todos para o nada nulo,
Uns cantam, outros choram, mas tão tortos
que a mesquinhez tresanda ao mais simples pulo.

Chicote? Bomba? Creolina? A liberdade?
É tarde, e estão contentes de tristeza,
sentados em seu mijo, alimentados
dos ossos e do sangue de quem não se vende.

(Na tarde que anoitece o entardecer nos prende)

Lisboa, Agosto 1971

Jorge de Sena, Versos e alguma prosa de
prefácio e selecção de textos de Eugénio Lisboa, co-ed. arcádia e Moraes, p.116-117


16/11/10

De cada vez

Contínua realidade que me sorves os dias
como hei-de responder-te se vives incluída
dos meus olhos abertos nas ávidas e frias
pedras incertas da vida

prisioneira do espelho que embacias
de cada vez que a turva suicida
torna ao morrer visíveis
as formas com que comes os meus dias

Gastão Cruz, As Leis do Caos, Assírio e Alvim, p.22


Um envoi especial para o Arpose, no seu primeiro aniversário

03/11/10

Estados mentais

"TEOREMA DE HEISENBERG": Fórmula da mecânica quântica segundo a qual a variância (dispersão em torno da média) da posição de um electrão, ou de qualquer outra partícula quântica, é inversamente proporcional à variância da velocidade. Corolário: se a dispersão na posição diminui, a dispersão na velocidade aumenta e ao contrário. A fórmula é rigorosa e deriva de alguns dos axiomas da teoria, sem nenhuma referência a processos de medidas. Deve portanto ser válida universalmente sem nenhuma referência a condições de laboratório. Contudo, tem sido muitas vezes mal interpretada falando de perturbações causadas pelo aparelho de medida ou mesmo pelo observador. Também tem sido mal interpretada falando da incerteza do experimentador a respeito da posição exacta e da velocidade exacta da coisa medida – daí o nome popular de "princípio da incerteza". Esta interpretação é incorrecta por duas razões. Em primeiro lugar, a física não trata de estados mentais como a incerteza. Segundo, a referida interpretação pressupõe que os electrões ou os seus análogos têm sempre uma posição e uma velocidade exactas, como se fossem massas pontuais clássicas, com a diferença que não as podemos conhecer com precisão. Mas a teoria não faz essa suposição: não postula que os electrões e análogos são pontuais e que as suas propriedades têm valores precisos. Em mecânica quântica fala-se de partículas (ou ondas) de uma maneira analógica que é, por isso, enganadora. Uma vez que essas confusões estejam clarificadas, o teorema de Heisenberg perde qualquer interesse para a epistemologia, excepto como um exemplo das distorções de factos científicos que uma filosofia falsa pode originar. Retém , porém, interesse para a ontologia, lembrando-nos que os tijolos constituintes do universo não têm forma definida e são por isso indescritíveis de uma maneira geométrica".

Mario Bunge, citado por Carlos Fiolhais, no blog De Rerum Natura



01/11/10

Senhor

Senhor se da tua pura justiça
Nascem os monstros que em minha roda eu vejo
É porque alguém te venceu ou desviou
Em não sei que penumbra os teus caminhos

Foram talvez os anjos revoltados.
Muito tempo antes de eu ter vindo
Já se tinha a tua obra dividido

E em vão eu busco a tua face antiga
És sempre um deus que nunca tem um rosto

Por muito que eu te chame e te persiga.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética I, Círculo de Leitores, p.285



Patrick Delcroix, Cherché, trouvé, perdu, Cisne Negro Dance Company

31/10/10

Se isto é um homem

Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece a paz
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelos e sem nome
Sem mais força para recordar
Vários os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou então que desmorone a vossa casa,
Que a doença vos entreve,
Que os vossos filhos vos virem a cara.

Primo Levi, Se isto é um Homem, Teorema, p.7



Continua aqui: parte II, III, IV, V, VI e VII

20/10/10

Madrugada

Há que deixar no mundo as ervas e a tristeza,
e ao lume de águas o rancor da vida.
Levar connosco mortos o desejo
e o senso de existir que penentrando
além dos lodos sob as águas fundas
hão-de ser verdes como a velha esperança
nos prados da amargura já floridos.

Deixar no mundo as árvores erguidas,
e da tremente carne as vãs cavernas
aos outros destinadas e às montanhas
que a neve cobrirá de álgida ausência.
Levar connosco em ossos que resistam
não sabemos o quê da paz tranquila.

E ao lume de águas o rancor da vida

Madrid, 4 de Setembro 72

Jorge de Sena, Versos e alguma prosa de,
prefácio e selecção de textos de Eugénio Lisboa,
Co-edição da arcádia e Moraes, p. 127


Oliver Stone, Platoon, 1986

13/10/10

Cantilena doce

Nonagésimo dia que não fosse
e como sê-lo ainda cantilena
doce nos ouvidos vento insone
ó maravilha sobreposta amena

por tanta cela amarga no regresso
de cada ramo tenro. Este arredio
pássaro preso de quantas breves sílabas
cortantes a moverem-se de exílio.

Ou na sombra repete como ver-te
concertina da noite quase cega
à minha voz e só para contigo
essa música nova que se abria

ó toda toda feita de sossego
por sobre o coração fundo e ferido.

Alberto Soares, Escrito para a noite, INCM, p.41


Lembro-me de ti...

  Lembro-me de ti... Na escuridão profunda da memória, o teu olhar ilumina a estrada percorrida na história da minha vida. E sinto, em mim, ...