30/10/09

Vidas vencidas

«Que eu, toda triste, acho que não sou. O certo é que tanto por mim mesma como pelo próximo, sei mais de tristeza que da alegria. Sou assim como se, dia a dia, me defrontasse com a figura do desengano. Mais até talvez que desengano. Da destruição.
E eis que me acode agora à ideia folhear um antigo caderninho de notas e revelar aqui as minhas juvenis reflexões: "Sou como a Fénix da lenda. Morro e ressuscito. Morro não em ninho de chamas olorosas mas sim na sequidão de um deserto. Que do meu coração quebrado, o renascimento me vem das histórias que crio. As vidas das histórias."
De resto, o enfado das rezas, nessa idade. Pior que enfado, esgotamento. Preces desatentas, as minhas, devido ao peixe dourado do aquário, os círculos que o peixinho desenhava, para trás e para diante, à volta do vidro. Também aos quatro continentes no tecto da sala: Europa, Ásia, África, América. Tão velha a casa que, ao ser construída, decerto não se conhecia ainda a Oceânia.
'Perdoai-nos, Senhor, as nossas ofensas como nós perdoamos'... Rezava-se.
E eu que, então, perdoava tudo. Não hoje, que já sofri de mais.
A ladainha de Nossa Senhora, a criada Elisa quem a recitava num latim estragado: 'Túrris ebúrnea... Janua Caeli...' E nós: 'ora pro nobis, ora pro nobis'. E logo ela! Que entenderia de tal língua? O que seria, afinal, tanto para ela como para nós, aquela arremedada melopeia? Rezava-se à noite e às escuras, para se poupar electricidade.
Na Avenida, contudo, os candeeiros da iluminação pública. Quando não lua cheia na abóbada celeste. Parecia, porém, que se via melhor sem luz. Os rebrilhos do peixe na escuridão líquida e límpida. Os baixos-relevos em estuque no tecto.
Depois de terminadas as orações, a mãe inquieta por causa da galinha de choco na adega. Nem era para menos. Uma semana inteira a pedrês sem sequer engolir um grão. De febre? De fastio? Ai se amanhã de manhã a encontrava morta! Os pintainhos prestes a picar os ovos. Santantoninho!»

[Maurice Béjart - "Brel Barbara"]

Avec Elegance

Se sentir quelque peu romain
Mais au temps de la décadence
Gratter sa mémoire à deux mains
Ne plus parler qu'à son silence
Et
Ne plus vouloir se faire aimer
Pour cause de trop peu d'importance
Etre désespéré
Mais avec élégance

Sentir la pente plus glissante
Qu'au temps où le corps étais mince
Lire dans les yeus de ravissantes
Que cinquante ans c'est la province
Et
Brûler sa jeunesse mourante
Mais faire celui qui s'en dispense
Etre désespéré
Mais avec élégance

Sortir pour traverser des bars
Où l'on est chaque fois le plus vieux
Y éclabousser de pourboires
Quelques barmans silencieux
Et
Grignoter des banalités
Avec des vieilles en puissance
Etre désespéré
Mais avec élégance

Savoir qu'on a toujours eu peur
Savoir son poids de lâcheté
Pouvoir se passer de bonheur
Savoir ne plus se pardonner
Et
N'avoir plus grand chose á rêver
Mais écouter son coeur qui danse
Etre désespéré
Mais avec espérance

Jacques Brel

28/10/09

Estranhos

«As mulheres e homens que vêm da feira, elas com gamelas à cabeça e eles desasados e de cântaros na mão, passam-me debaixo das janelas como estranhos, que me são.
Dentro de qualquer panelita ou tacho de barro um punhado de sardinhas... E vão, devagar, trajados de domingo, calçados... E eu olho-os indiferente, pensando apenas no barro antiquíssimo de que eles se servem, na petinga salgada que comem, nas suas vidas, paralelas, e jamais concordes, jamais fundíveis com a dos bons proprietários.»
[Irene Lisboa, «Solidão» II, p.222]

27/10/09

Eis-me aqui



[foto daqui]

«Chamar 'tu' a Deus, com variantes que vão da imprecação à súplica, é o arbítrio maravilhoso da criatura que remonta à sua origem e a interroga, por ela chama e a sacode na distância. Quem pela primeira vez exclamou a primeira oração não a pode ter inventado. Só pode ter reagido a um chamamento com uma resposta, como Abraão com o seu "hinnèni", eis-me aqui. Eis-me aqui é a primeira palavra, a premissa de toda a oração. A criatura separa-se do resto da espécie e da criação, exclui-se para estabelecer a relação. A oração acontece sempre numa extremidade do campo. Lê-se no salmo 78: "E conduziu-os à sua morada santa" (Sl 78,54). Deus leva os hebreus para o deserto, porque aquele é o lugar do encontro. Não os chama num centro, numa praça, mas no isolamento inóspito do vento e do pó.
No deserto: é este o lugar físico da oração. O crente cria o vazio à sua volta e desta forma faz acontecer o encontro


[Erri De Luca, «Caroço de Azeitona», Assírio & Alvim, p.7]

13/10/09

Ninguém ama de olhos fechados

Dormir, sim,
quando o silêncio
dói. Mas nunca
se dorme quando
o amor
é uma insónia. Ninguém
ama de olhos
fechados.


Albano Martins, «Palinódias, Palimpsestos»
[ poema 'surripiado' no «ComLivros-Teresa»; ver ainda uma entrevista, aqui]

Responsabilidade involuntária



«Naquele tempo, tentei muitas vezes falar com amigos meus sobre o problema: imagina que alguém corre conscientemente para a sua ruína e que tu podes salvá-lo - o que farias? Imagina uma operação e um doente que tomou drogas que são incompatíveis com a anestesia, mas que se envergonha de ser um drogado, e não o quer dizer ao anestesista - ias falar com o anestesista? Imagina um processo em tribunal e um acusado que vai ser punido porque não confessa que é canhoto e por isso não pode ter cometido aquele crime, que foi cometido por um mão direita, mas que tem vergonha de ser canhoto - irias dizer ao juiz o que se está a passar? Imagina que é um homossexual, que não pode ter cometido aquele acto, mas que tem vergonha de ser homossexual. Não se trata aqui da questão de uma pessoa se envergonhar por ser canhoto ou homossexual: imagina, apenas, que o acusado tem vergonha. (...)
- Não, o teu problema não tem uma solução agradável. Naturalmente que temos de agir se a situação que descreveste é uma situação que implica uma responsabilidade involuntária ou uma responsabilidade que decidimos assumir. Ao sabermos o que é melhor para o outro, e sabendo que ele se nega a vê-lo, temos de tentar abrir-lhe os olhos. Devemos deixar-lhe sempre a última palavra, mas temos que falar com ele, com ele e não com outra pessoa nas suas costas.»

[Bernhard Schlink, «O Leitor», Ed. Asa, p.90, 91 e 94]

11/10/09

La lluvia

Bruscamente la tarde se ha aclarado
porque ya cae la lluvia minuciosa.
Cae o cayó. La lluvia es una cosa
que sin duda sucede en el pasado.

Quien la oye caer ha recobrado
el tiempo en que la suerte venturosa
le reveló una flor llamada rosa
y el curioso color del colorado.

Esta lluvia que ciega los cristales
alegrará en perdidos arrabales
las negras uvas de una parra en cierto

patio que ya no existe. La mojada
tarde me trae la voz, la voz deseada,
de mi padre que vuelve y que no ha muerto.


Jorge Luís Borges

[é magnífico! obrigado, T.  ]

09/10/09

De olhos abertos

«Agora que sabia fatos sobre Martim, agora que finalmente o olhava de olhos abertos, agora ela o desconhecia. E como um cego que tivesse recobrado a visão e não reconhecesse com os olhos aquilo que mãos sensíveis sabiam de cor, ela então fechou um instante as pálpebras, tentando recuperar o conhecimento íntegro anterior; abriu-as de novo e procurou fazer das duas imagens uma só. — Eu disse... — de novo ela o olhou quieta; mas porque não precisava mais dele para nada, pôde também olhá-lo com piedade e desprezo
[Clarice Lispector, «A maçã no escuro», Relógio D'Água, p.313]

O dia era de Outono e o vento soprava em pequenas rajadas, deixando na pele ainda nua das pernas um rasto frio. Encostada ao ferro da paragem, sozinha na rua deserta, a rapariguinha fixava os olhos na linha do horizonte que marcava o início da estrada, à procura de aí ver aparecer o tejadilho verde e logo a seguir a tela branca com letras pretas, a indicar o destino, e finalmente o autocarro inteiro, rolando desengonçado, encosta a baixo, até ao sítio onde ela estava. Esperava, e enquanto esperava, anoitecia, e em breve veria acenderem-se as luzes da rua. Na estrada, o movimento não era muito. Apenas de vez em quando um carro passava, dentro seguia gente com pressa de chegar a casa, o jantar por fazer, as crianças para despachar, banho, jantar e cama. Passavam sem reparar na paragem, na rapariguinha, de pé, à espera, olhos fixos no horizonte. Passavam, apenas, rumo ao destino. E cada vez que um deles passava sem olhar, ela suspirava de alívio, confortada pela segurança de uma rua vazia. Porque os outros são uma ameça, havia-lhe ensinado a mãe. «Nunca aceites boleia», dizia ela. «Nunca! Não confies em ninguém.»

07/10/09

02/10/09

Não posso adiar o amor


[imagem da Nasa]

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração
.

[ António Ramos Rosa ]

Lembro-me de ti...

  Lembro-me de ti... Na escuridão profunda da memória, o teu olhar ilumina a estrada percorrida na história da minha vida. E sinto, em mim, ...