13/01/10

O 13

«Talvez porque nascida numa sexta-feira dia 13, costumava interrogar-me se tal não teria interferido em meu pai perder o emprego. Infantis essas minhas congeminações e esses medos. A adolescência. Era a adolescência. Idade parece que procípia a nos supormos a mais no mundo. Um "a mais", quanto a mim, o mesmo que "mal-grado meu".
Ana falava de como o marido chegara cedo, naquela manhã, e com um ar abatido, se deixara cair no cadeirão do quarto e escondera a cara nas mãos: "Despedi-me... Estou desempregado.»
Era uma empresa bancária particular que recebia dinheiro em depósito e fazia empréstimos. Empresa pequena. Além de meu pai, o contabilista, um manga-de-alpaca tc-tc à máquina, e o chefe sujeitinho tão rude como refalsado. O pai propusera aumento de salário, trabalhava duro e ganhava uma ninharia, impossível continuar em semelhantes condições. O patrão, no entanto, a desconversar, a trocar-lhe as voltas, cínico, como se não se tratasse de assunto sério. Discutiram em seguida, conquanto que em vão. Desesperado, por fim, o guarda livros, largando a pasta no tampo da secretária e envergando o casacão, saiu porta fora.
Na poltrona aos pés da cama da mulher, arquejava, José. Errara, quando Deus quer... Devia ter considerado, pensado melhor, não se precipitar. Que afinal a família a crescer - e ainda bem, adorava crianças -, a crescer a família e os encargos, e ele, desgraça das desgraças, desempregado! Levantava-se. Tornava a sentar-se. Andava de um lado para o outro, pálido, perturbado. Ana a tranquilizá-lo. "Ora, tu tens carteira profissional." E conhecedor do ofício como poucos, e conceituado em toda a cidade, colocações não haviam de lhe escassear. Pegando-lhe na mão, afagava-o, a companheira. A mão muito branca, com anel de cachucho: um brilhante que, esfregado em flanela de lã, secava, o mesmo que dizer sarava um terçol num olho.
Chamando depois a empregada, a parturiente pediu-lhe que fizesse um chá. Chá de macela. Macela-de-S.-João, quinze flores para dois quartilhos de água a ferver e cinco minutos a abrir à cor. Tomaram então os dois a tisana por entre um total silêncio. Com o abalo, para mais após o parto, Ana começava a sentir-se indisposta, latejavam-lhe as fontes, sobreveio-lhe febre ao entardecer.
Eu tinha vindo ao mundo na véspera, 13 de Janeiro.
O tio, que na ocasião se encontrava em Lisboa, a falta que Luiz ali não fazia. Cunhados muito unidos, muito bem dados, esses. Fosse qual fosse o problema, o aperto, nenhum deles dispensando o parecer do outro.
(...)
Tempo em que as superstições, o que eram as superstições senão o pressentimento do que havia de vir e o sobreaviso? Nesse tempo e ainda hoje. Intervenção, aí, dos astros, dos elementos, da própria Natureza. Quando não da hora em que se nasce, do local onde se vive, da casa que se habita: o lado para o qual abre a porta da rua, as sombras, os ecos, as memórias da casa.»  


[Maria Ondina Braga, «Vidas Vencidas», Caminho, p.71-72 e 74]

Maria Ondina Braga nasceu no dia 13 de Janeiro, há setenta e oito anos, em Braga. Ao Ernane C.,  que teve a gentileza de chamar a minha atenção para este facto, aquele abraço!

Os belos monstros



«I want to do something for her... but what?»

Gary Trousdale e Kirk Wise, «Beauty and the Beast»

12/01/10

Ao «Almocreve das Petas»



Ao machucho poetarrão José Daniel Rodrigues da Costa


«Não presta Coridon, não presta Elpino,
Filinto é ninharia, é lixo Alfeno;
Albano fala só do Tejo ameno,
Só tardes e manhãs descreve Alcino;

Trescala aos Seiscentistas o Paulino;
Pois Bocage! Isso é peste, isso é veneno!» -
Roncava charlatão rolho e pequeno,
Pequeno em corpo, em alma pequenino.

- «Quem acha Voss'mecê (lhe sai dum lado
Taful do sério rancho das lunetas)
Quem acha para versos estremado?» -

- Quem?! (diz o tal) não façam lá caretas:
Um que dos seus papéis anda pejado,
O aguazil Daniel, cantor de petas».

Ao mesmo, publicando o «Almocreve das Petas»
 
Das Petas o Almocreve é obra tua,
Bem se vê,  Daniel, na frase e gosto;
Adiça três de Abril ou seis de Agosto,
É de quem vende as rimas pela rua.

Cheira a teu nome o roubo da perua,
E entre o tostado arroz o gato posto;
Eis a obra melhor que tens composto,
Inda que de artifício e graça nua.

A gente por Lisboa anda pasmada,
Vendo-te farto e cheio como um ovo
Dos alvos pintos, que te deu por nada.

E frio de terror murmura o povo
Que a tua estupidez anda pejada,
E que cedo se espera um parto novo.

Ao mesmo, dando à luz o segundo volume das suas «Rimas»

Tomo segundo à luz saiu das «Rimas,
Obra mui de vagar, mui bem composta,
E sujeita depois a doutas limas.

Fala em ópios, em manas, fala em primas,
Diz coisas de que a plebe não desgosta,
Morde em peraltas, na ralé disposta
A saltos, macaquices, pantominas.

Por estas e por outras que tem feito,
Verá qualquer leitor nas obras suas
Que ele para versar nasceu com jeito.

Acham-se em tendas, acham-se em comuas;
E para lhes aumentar honra e proveito,
As vende o próprio autor por essas ruas.

[pág. 139-140]

Caravaggio



Michelangelo Merisi da Caravaggio [1571-1610] é o autor deste David con la testa di Golia, presentemente em exposição na Galleria Borghese, em Roma. Fosse este o único quadro em exposição e ainda assim valia a pena a viagem. Não é, como se pode verificar aqui. Infelizmente, não vou poder ir até lá. Consolei-me com este documentário da BBC sobre a vida e obra de Caravaggio que encontrei no You Tube, em seis partes. Para quem tem o mesmo problema que eu, aqui ficam os links:
 

10/01/10

A Tempestade

«Deposed from his dukedom in Milan and cast out to sea with his daughter, Miranda, Prospero has a miraculous power over the island on which they have made their home. As the play begins, Prospero has used his art to bring about another shipwreck. This time his usurping brother and his colleagues are cast ashore, but through the power of magic, love and forgiveness, chaos is gradually transformed into order.» [texto da contracapa do livro «The Tempest», de William Shakespeare, Penguin Popular Classics, 2001]






09/01/10

Casa branca

Casa branca em frente ao mar enorme,
Com o teu jardim de areia e flores marinhas
E o teu silêncio intacto em que dorme
O milagre das coisas que eram minhas.

...........................................

A ti eu voltarei após o incerto
Calor de tantos gestos recebidos
Passados os tumultos e o deserto
Beijados os fantasmas, percorridos
Os murmúrios da terra indefinida.

Em ti renascerei num mundo meu
E a redenção virá nas tuas linhas
Onde nenhuma coisa se perdeu
Do milagre das coisas que eram minhas.


[Sophia de Mello Breyner Andresen, Antologia, Círculo de Poesia - Moraes Editores, p.17]

08/01/10

Ao machucho poetarrão José Daniel Rodrigues da Costa

Tomo segundo à luz saiu das «Rimas,
De José Daniel Rodrigues Costa»,
Obra mui de vagar, mui bem composta,
E sujeita depois a doutas limas.


Fala em ópios, em manas, fala em primas,
Diz coisas de que a plebe não desgosta,
Morde em peraltas, na ralé disposta
A saltos, macaquices, pantomimas.


Por estas e por outras que tem feito,
Verá qualquer leitor nas obras suas
Que ele para versar nasceu com jeito.


Acham-se em tendas, acham-se em comuas;
E para lhe aumentar honra e proveito,
As vende o próprio autor por essas ruas.

[Manuel Maria de Barbosa Du Bocage, «Sonetos», Livraria Bertrand - Obras Primas da Língua Portuguesa, p.140]

Nota: comuas = latrinas

06/01/10

O artista brinca sempre

«Gostava sim - porque não havia de gostar? era um luxo, um prazer do espírito - de fazer novelas. De tratar figuras e cenários, de falar pelos outros, escrupulosamente; de seguir pistas sentimentais.
Mas não tenho de as fazer!
A qualidade de desenvoltura artística não preenche os espaços, todos os espaços, de uma composição literária.
Histórias, saber contar histórias (mesmo nestas horas chatas e banais, vazias, do tempo individual) deve ser agradável. E ver depois que se contaram bem, muitíssimo agradável!
M. contou histórias novas. Sem bizararia. O seu mérito foi esse. Achou histórias para contar, e deu-lhes alma. Caiu aqui, levantou-se ali... mas carregou-as, insuflou-as de ardência, de espectáculo e de modéstica, de personalismo afectivo.
I. achou (foi lúcida) que era uma portuguesa. E que os portugueses são todos assim, mas porquê? desenganados, quase cépticos, deplorativos.
Sim, há excessivo subjectivismo, excesso de intromissão pessoal na narrativa dos portugueses. Põem-se demasiado ao espelho nas suas obras. Hábito? Moda fatalmente transmitida? Comodidade? Restrição de estilo?
Mas M. contou, soube contar coisas de grande afinidade, todas sujeitas a um nexo. Coisas de um lado, de uma janela da sua visão. E bateu-as, encheu-as dos seus sentimentos.
A vida, vista, presenciada, é plana, insinuosa, sem vulto. M. deu-lhe vulto; pela anedota? Sim, mas também pelo seu comentário e o fervor com que apresenta a anedota.
M. mostrou-nos a sociedade que conhece, mas com que não lida, com que se não comprometeu. Porque M. tem no seu livro muitos dos seus sentimentos e ressentimentos, mas não as suas atitudes, o seu espírito mundano, convivente, nem o seu 'savoir-faire'.
Esta é a grande dificuldade ou cautela do artista: dar-se, comprometendo-se. Deseja e foge a comprometer-se. O artista brinca sempre. Consciente e inconsciente. Defende-se dos outros, seus próximos. Dos outros e do seu próprio constrangedor, pesante, imediato ambiente.»

[Irene Lisboa, «Solidão II», Editorial Presença, 1999, p.92-93]

04/01/10

As palavras

«O silêncio é mais voluptuoso que o som adulador de uma voz. Butch demorava cada dentada na torrada. Eu recolhia as migalhas e côdeas de pão uma por uma, pegava-lhes com as polpas dos meus dedos e punha-as no prato.
Bebíamos várias chávenas de chá.
Depois de comer a torrada, ele começava a massajar as entradas da testa e a formar remoinhos com mechas de cabelo.
Eu limpava cuidadosamente as manchas da toalha com um pano húmido. Depois, olhava as minhas unhas, tirava delas alguma porcaria, retinha na minha boca o sabor do café amargo.
As palavras não se gastam, dizia ele, mas uma pessoa gasta-se em palavras.»

L'eté invincible

«Depuis cinq jours que la pluie coulait sans trêve sur Alger, ele avait fini par mouiller la mer elle-même. Du haut d'un ciel qui semblait inépuisable, d'incessantes averses, visqueuses à force d'épaisseur, s'abattaient sur le golfe. Grise et molle comme une grande éponge, la mer se boursouflait dans la baie sans contours. Mais la surface des eaux semblait presque immobile sous la pluie fixe. De loin en loin seulement, un imperceptible et large mouvement soulevait audessus de la mer une vapeur trouble qui venait aborder au port, sous une ceinture de boulevards mouillés. La ville elle-même, tous ses murs blancs ruîsselants d'humidité, exhalait une autre buée qui venait à la rencontre de la première. De quelque côté qu'on se tournât alors, il semblait qu'on respirât de l'eau, l'air enfin se buvait.
Devant la mer noyée, je marchais, j'attendais, dans cette Alger de décembre qui restait pour moi la ville des étés. J'avais fui la nuit d'Europe, l'hiver des visages. Mais la ville des étés elle-même s'était vidée de ses rires et ne m'offrait que des dos ronds et luisants. Le soir, dans les cafés violemment éclairés où je me réfugiais, je lisais mon âge sur des visages que je reconnaissais sans pouvoir les nommer. Je savais seulement que ceux-là avaient été jeunes avec moi, et qu'ils ne l'étaient plus.
Je m'obstinais pourtant, sans trop savoir ce que j'attendais, sinon, peut-être le moment de retourner à Tipasa. (...) 
(...) Je pris à nouveau la route de Tipasa. 
Il n'est pas pour moi un seul de ses soixante-neuf kilomètres de route qui ne soit recouvert de souvenirs et de sensations. L'enfance violente, les rêveries adolescentes dans le ronronement du car, les matins, les filles fraîches, les plages, les jeunes muscles toujours à la pointe de leur effort, la légère angoisse du soir dans un coeur de seize ans, le désir de vivre, la gloire, et toujours le même ciel au long des années, intarissable de force et de lumière, insatiable lui-même, dévorante une à une, des mois durant, les victimes offertes en croix sur la plage, à l'heure funèbre de midi. Toujours la même mer aussi, presque impalpable dans le matin, que je retrouvai au bout de l'horizon dès que la route, quittant le Sahel et ses collines aux vignes couleur de bronze, s'abaissa vers la côte. (...)
À midi sur les pentes à demi sableuses et couverts d'héliotropes comme d'une écume qu'auraient laissée en se retirant les vagues furieuses des derniers jours, je regardais la mer que, à cette heure, se soulevait à peine d'un mouvement épuisé et je rassasiais les deux soifs qu'on ne peut tromper longtemps sans que l'être se dessèche, je veux dire aimer et admirer. Car il y a seulement de la malchance à n'être pas aimé: il y a du malheur à ne point aimer. Nous tous, aujourd'hui, mourons de ce malheur. C'est que le sang, les haines décharnent le coeur lui-même; la longue revendication de la justice épuise l'amour qui pourtant lui a donné naissance. Dans la clameur où nous vivons, l'amour est impossible et la justice ne suffit pas. C'est pourquoi l'Europe hait le jour et ne sait qu'opposer l'injustice à elle-même. Mais pour empêcher que la justice se racornisse, beau fruit orange qui ne contient qu'une pulpe amère et sèche, je redécouvrais à Tipasa qu'il fallait garder intactes en soi une fraîcheur, une source de joie, aimer le jour qui échappe à l'injustice, et retourner au combat avec cette lumière conquise. Je retrouvais ici l'ancienne beauté, un ciel jeune, et je mesurais ma chance, comprenant enfin que dans les pires années de notre folie le souvenir de ce ciel ne m'avait jamais quitté. C'était lui qui pour finir m'avait empêché de désespérer. Jávais toujours su que les ruines de Tipasa étaient plus jeunes que nos chantiers ou nos décombres. Le monde y recommençait tous les jours dans une lumière toujours neuve. O lumière! c'est le cri de tous les personnages placés, dans le drame antique, devant leur destin. Ce recours dernier était aussi le nôtre et je le savais maintenant. Au milieu de l'hiver, j'apprenais enfin qu'il y avait en moi un été invincible.»          

[Albert Camus, «L'été - Retour à Tipasa», Gallimard, p.99 - 109]

02/01/10

O gato

«O elevador estava parado. Entrei eu nele e entraram outros, pouca gente. Ainda não era ou talvez já tivesse passado a hora da saída dos 'funcionários' e o Torel naquele momento também dava um pequeno, quase nulo contingente de passageiros.
Fazia sol e havia tranquilidade.
 Como é que o diabo de um gato se havia de meter debaixo do enorme elevador, já depois do homem das máquinas ter dado o seu toque nas rodas?
O gato vai morrer, pensámos nós e olhámos suponho que com vergonha uns para os outros.
O elevador devia ficar parado!, dar o alarme ao outro que ia a subir!
No entanto, não parou. O guarda-freio e o condutor eram escravos da casa das máquinas que punha os elevadores em movimento; consideraram uma fatalidade o gato morrer e não tiveram uma ideia nem um gesto para o impedir. Que é que os passageiros podiam fazer? Dar um grito? Seria tremendo, e quem o ousaria?
 Cobarde!, chamava-me eu sem coragem ouvindo a seguir os miados terríveis, raivosos ou dilacerantes do gato. Enquanto o gato berrou, o que durou pouco mas ainda assim bastante para cada um se poder acusar de seu matador, havia um mal-estar disfarçado nos passageiros. Ficaram à espera.
O condutor, alto e gordo, uma cara agradável que se via todos os dias, mostrava uma compaixão discreta pelo animal: aquilo dura pouco... já tem acontecido...ficou entalado.
E durou.
Mas a surpresa, a dor, a violência de que o pobre gato foi vítima ficaram ecoando. Quem se subtraía a senti-las em si, na sua consciência, nos seus nervos, onde quer que fosse?
Teria o gato girado com a roda?
Dados aqueles poucos miados terríveis calou-se.
Na cara do condutor transparecia então a inteligência do caso, queria ele explicar: eu não lhes dizia?
E lá ficou no seu posto. Nós saímos necessariamente aliviados.
Subir e descer neste veículo em cada dia do ano é cumprir uma pequena e ordinária rota, a pino, que sem exagero se pode considerar tão edificante como dar largas voltas pelo mundo.
Naquele dia tinha morrido o gato, noutros tudo se apresentaria banal, noutros voltariam os factos extraordinários.
É muito útil haver coisas e lugares constantes onde afinal a vida varie. Neles se nos afina a sensibilidade.» 

[Irene Lisboa, «Esta cidade! - O Lavra», Editorial Presença, p.98-99]  
 

Lembro-me de ti...

  Lembro-me de ti... Na escuridão profunda da memória, o teu olhar ilumina a estrada percorrida na história da minha vida. E sinto, em mim, ...