16/07/10

A memória

Não envenenem mais
o peso
das coisas sem idade.

Deixem-nas
amorosamente repousadas,
levemente esquecidas,
levemente lembradas

- um lago calmo
de águas densas e paradas.

(1965-2010)

Alberto Soares, in «Arpose»



Ingmar Bergman, Saraband, 2003

15/07/10

Sad Steps



Groping back to bed after a piss
I part thick curtains, and am startled by
The rapid clouds, the moon's cleanliness.

Four o'clock: wedge-shadowed gardens lie
Under a cavernous, a wind-picked sky.
There's something laughable about this,

The way the moon dashes trough clouds that blow
Loosely as cannon-smoke to stand apart
(Stone-coloured light sharpening the roofs below)

High and preposterous and separate -
Lozenge of love! Medallion of art!
O wolves of memory! Immensements! No,

One shivers slightly, looking up there.
The hardness and the brigntness and the plain
Far-reaching singleness of that wide stare

Is a reminder of the strength and pain
Of being young; that it can't come again,
But is for others undiminished somewhere.

Philip Larkin, Sad Steps, in dark matter poems of space,
selecção de Maurice Riordan e Jocelyn Bell Burnell, Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, p.65



06/07/10

Interiores

Há no céu um recado para mim.
Vejo-o bem, estou a olhá-lo;
não o posso traduzir,
é cifrado.
Entendo-o com todo o corpo;
não sei contá-lo.

José Moreno Villa, Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea
selecção e tradução  de José Bento, Assírio e Alvim, p.117


Woody Allen sobre Interiors (1978)

04/07/10

A filha da sereia

Esta história foi contada:
Meu pai teve amores com uma sereia e eu deles nasci. Nunca conheci mãe. Fui criada sem carinho e sem amor e tive a má ventura de nascer com os pés soldados. Meu pai desapareceu com os remorsos da minha infelicidade e eu, deixada a estranhos, conheci todos os amargores da vida.
Diziam que sabia cantar e era habilidosa, até me gabavam as mãos e os olhos, mas nunca me amaram. Consumia a minha vida a chorar, a cantar e a trabalhar. Cada vez era mais triste e à roda dos olhos creei círculos negros. As minhas mãos pareciam de cera, nunca ria nem tinha esperanças. Sonhava muito, só os sonhos me animavam. E de uma vez com tanta fé sonhei que o meu sonho se realizou. Parece impossível? Mas não é, ides ouvir.
Eu tinha adormecido a pensar que havia de ser feliz. Não era um pensamento certo, era cansaço de dor.
Fui fechando os olhos até que caí num sono profundo. Noite alta sinto uma voz... chamava por mim e era tão terna como ainda nunca ouvi outra. Desperto. Entra-me pela porta um grande resplendor de luz e no meio uma figura linda a sorrir. Era ela que me falava. Trazia na mão uma bola de oiro que disse ser o pomo da boa sorte. E que mo entregava... sobre ele havia eu de correr mundo... que nunca parasse, os bons amantes me socorreriam.
Há tanto tempo! Corro, corro, corro. Tenho os pés colados ao pomo...
A filha da sereia ia falando e o príncipe e a namorada ouviam-na condoídos.
O príncipe desejava socorrê-la, sem saber como. A noiva coma as mãos descaídas parecia ansiosa. Assim que a outra se calou baixou-se e retirou-lhe o pomo dos pés, sem custo nenhum. A rir apresentou-o na palma da mão.
A filha da sereia atónita deu um grito. Começou a andar e a correr, voltou para trás, abraçou os namorados, chorou de gozo, abençoou-os e disse que para todo o sempre os queria servir e amar.
A noiva com os olhos brilhantes continuava com o pomo na mão. O noivo tomou-lho, por ela lho oferecia, e a filha da sereia ia dizendo:
Sêde felizes, bem o mereceis... a fada mo afirmou, sois os perfeitos amantes...

Irene Lisboa, 13 Contarelos que Irene escreveu e Ilda ilustrou, p. 68 a 71.

01/07/10

A moralidade

A moralidade. Seria simplório pensar que o problema moral em relação aos outros consiste em agir como se deveria agir, e o problema moral consigo mesmo é conseguir sentir o que se deveria sentir? Sou moral à medida que faço o que devo, e sinto como devo sentir? De repente a questão moral me parecia não apenas esmagadora, como extremamente mesquinha. O problema moral, para que nos ajustássemos a ele, deveria ser simultaneamente menos exigente e maior. Pois como ideal é ao mesmo tempo pequeno e inatingível. Pequeno se se atinge: inatingível, porque nem ao menos se atinge. «O escândalo ainda é necessário, mas ai daquele por quem vem o escândalo» - era no Novo Testamento que estava dito? A solução tinha de ser secreta. A ética da moral é mantê-la em segredo. A liberdade é um segredo.
Embora eu saiba que, mesmo em segredo, a liberdade não resolve a culpa. Mas é preciso ser maior que a culpa. A minha ínfima parte divina é maior que a minha culpa humana. O Deus é maior que minha culpa essencial. Então prefiro o Deus, à minha culpa. Não para me desculpar e para fugir mas porque a culpa me amesquinha.

Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H., Relógio D'Água Editores - Ficções, p.69 


28/06/10

Só à laranja e aos gregos...

Só à laranja e aos gregos é concedida 
uma salvação circular. Esquecer
para melhor saber, odiar
para melhor amar, eis os dois princípios
da sua paciência mais avançada.
E só os gregos podem pisar essas lajes
ameaçadas. Nós, os romanos,
sua herança encalhamos nos ramos das árvores
como precisamos do telefone, dos sinais de trânsito,
do computador, do cimento armado, do plástico,
do robot
para estudarmos o clima e entrarmos na sabedoria
dos arvoredos onde estamos ocultos.
(...)

 Luís Filipe Rodrigues, dizer de véspera, Círculo da poesia - Morais Editores, p.22.

22/06/10

Cólera

Liberta o coração para razões que prolongam o desejo de viver. Quem não se encoleriza acaba por pedir socorro por meio de doenças, obsessões e livros de viagens.

Agustina Bessa-Luís, Dicionário Imperfeito, Guimarães Editores, p.53



20/06/10

Fecho

Vimo-la por momentos na equívoca
luz da manhã: tínhamos decidido
que não a olharíamos de novo,
nem mais ninguém: melhor assim, talvez,
nesse restrito abismo incongruente
fechar depressa todo o sofrimento.

Gastão Cruz, Escarpas, Assírio e Alvim, p.47


Antonio Vivaldi, Gelido in ogni vena,
Magdalena Kozena, Venice Baroque Orchestra, maestro: Andrea Marcon

19/06/10

A verdade não é coisa que se ame

Para confessar-se, a pessoa divide-se em duas, e uma delas mente. Para ser sincera, a pessoa ou acredita demasiado em si mesma, ou demasiado acredita nas suas próprias criações. No primeiro caso, é costume achar-se que mente como homem; no segundo, que mente como artista. Quando precisamente ela põe toda a sua honestidade em ser verídica. Ou, se quisermos, não há desonestidade a que ela não se arrisque por amor da verdade. A explicação deste mistério talvez esteja em que a verdade (exista ou não) não é coisa que se ame, ou não pode ser a verdade.

Jorge de Sena, in prefácio do livro «Confissões», de Jean-Jacques Rousseau, Portugália, p.20-21

16/06/10

Verdades práticas

No tempo em que o Diabo florescia, os pânicos, os terrores, as inquietações eram males que beneficiavam de uma protecção sobrenatural: sabia-se quem os provocava, quem presidia ao seu desabrochamento; abandonados agora a si mesmos, eles transformaram-se em "dramas interiores" ou degeneraram em "psicoses", em patologia secularizada.

E.M.Cioran, Silogismos da amargura, Letra Livre, p.21

Lembro-me de ti...

  Lembro-me de ti... Na escuridão profunda da memória, o teu olhar ilumina a estrada percorrida na história da minha vida. E sinto, em mim, ...