13/10/10

Cantilena doce

Nonagésimo dia que não fosse
e como sê-lo ainda cantilena
doce nos ouvidos vento insone
ó maravilha sobreposta amena

por tanta cela amarga no regresso
de cada ramo tenro. Este arredio
pássaro preso de quantas breves sílabas
cortantes a moverem-se de exílio.

Ou na sombra repete como ver-te
concertina da noite quase cega
à minha voz e só para contigo
essa música nova que se abria

ó toda toda feita de sossego
por sobre o coração fundo e ferido.

Alberto Soares, Escrito para a noite, INCM, p.41


06/10/10

Morrer por escrito

Não sei quem foi que disse que um diário equivale a um lento suicídio. Eu não estou a escrever um diário. Estou a passar para o papel recordações de tempos idos, ocasionalmente misturadas com impressões que vão surgindo. Sinto-me, no entanto, morrer aos poucos nestas linhas. O querer dizer o que se passa em nós, analisarmo-nos por escrito, ainda que a sós connosco, é devastador. Mas talvez eu já esteja mesmo morta. Quem fala é aquela parte de fora de mim sempre atenta à de dentro e a explorá-la, um atroz, um falso eu que tive de inventar para não desistir.

Maria Ondina Braga, Estátua de Sal, ed. refundida e ampliada, Círculo dos Leitores, p.81


Arvo Part, Spiegel im Spiegel; Pierart Natacha, coreografia e dança

05/10/10

Pruridos de nobreza

Eu não creio que a nossa Fidalguia
Procedesse d'Adão, que era um coitado;
Um paisano, que nunca andou calçado,
Um pobre, que de peles se vestia.

Não teve armas, brasões; nem possuía
Por prova de ser nobre algum Morgado;
O fôro nunca viu; nem foi tratado,
Como agora se faz, com Senhoria.

Eva inda foi pior, pois na Escritura
Se não trata de Dom, nem de Excelência.
Nem se diz se nas danças fez figura.

E assim venho a tirar por consequência,
Que estando hoje a nobreza em tanta altura
Não traz dele, nem dela a descendência.

Paulino António Cabral, Poesias, Livraria Figueirinhas - Porto, p.100


04/10/10

Ah, diz-me a verdade acerca do amor


Há quem diga que o amor é um rapazinho,
E quem diga que ele é um pássaro;
Há quem diga que faz o mundo girar,
E quem diga que é um absurdo,
E quando perguntei ao meu vizinho,
Que tinha ar de quem sabia,
A sua mulher zangou-se mesmo muito,
E disse que não servia para nada.

Será parecido com uns pijamas,
Ou com o presunto num hotel de abstinência?
O seu odor faz lembrar o dos lamas,
Ou tem um cheiro agradável?
É aspero ao tacto como uma sebe espinhosa
Ou é fofo como um edredão de penas?
É cortante ou muito polido nos seus bordos?
Ah, diz-me a verdade acerca do amor.
(...)

W.H.Auden
, Diz-me a verdade acerca do amor - dez poemas,
trad. de Maria de Lourdes Guimarães, Relógio D'Água, p.9


27/09/10

Ansiosamente

Ansiosamente os pássaros invadem
o lado exterior da minha vida
Essa harmonia estranha

entra nos pensamentos
com que durante a noite repensei
a verdade da vida

A janela fechada
representa a manhã Dormir
a venenosa unidade impossível

Gastão Cruz, As leis do caos, Assírio & Alvim, p.30

23/09/10

Atrás de tempo...

Há um mês, se tanto, avisara ela o seu amigo de que, em tempo azado, deixaria Macau. E, sem se mostrar surpreendido, Lu respondera que atrás de tempo, tempo vinha, e que nas causas do coração... Desde quando é que o coração se regulava pelo calendário?
Maria Ondina Braga, Nocturno em Macau, Caminho, p.211



20/09/10

A terra é o céu

The Fact that Earth is Heaven -
Whether Heaven is Heaven or not
If not an Affidavit
Of that specific Spot
Not only must confirm us
That it is not for us
But that it would afront us
To dwell in such a place -

O Facto de que a Terra é o Céu -
Seja o Céu o Céu ou não
Se não é um Affidavit
Desse ponto particular
Não só tem de nos confirmar
Que a nós não se destina
Mas também que nos insultaria
Morar em tal lugar -

Emily Dickinson, Esta é a minha carta ao mundo e outros poemas, ed. bilingue, trad. Cecília Rego Pinheiro, Assírio & Alvim, p.28-29


17/09/10

Palavras incomuns



Os átomos não são coisas. WERNER HEISENBERG

Para o sábio, todas as «coisas» são erradicadas. BUDA

Thomas J. Macfarlane
, Einstein e Buda, Palavras Comuns, Estrela polar, p.130

15/09/10

Saudade

(...) E porem me parece este nome de ssuydade tam proprio, que o latym nem outro linguagem que eu saibha nom he pera tal sentido semelhante. De sse aver alguas vezes com prazer, e outras com nojo ou tristeza, esto se faz, segundo me parece, por quanto suydade propriamente he sentydo que o coraçom filha por se achar partydo da presença dalgua pessoa, ou pessoas que muyto per afeiçom ama, ou o espera cedo de sseer. E esso medês dos tempos e lugares em que per deleitaçom muyto folgou. Dygo afeiçom e deleitaçom, por que som sentymentos que ao coraçom perteencem, donde verdadeiramente nace a ssuydade mais que da rrazom nem do siso. E quando nos vem algua nembrança dalguu tempo em que muyto folgamos, nom geeral, mas que traga ryjo sentydo, e por conhecermos o estado em que somos seer tanto melhor, nom desejamos tornar a el por leixar o que possuymos, tal lembramento nos faz prazer. E a mingua do desejo per juyzo determynado da rrazom nos tira tanto aquel sentydo , que faz a ssuydade, que mais sentymos a folgança por nos nembrar o que passamos, que a pena da myngua do tempo ou pessoa. E aquesta suydade he sentyda com prazer mais que com nojo nem trizteza.

D. Duarte, Leal Conselheiro
in História e Antologia da Literatura Portuguesa, séculos XIII-XV, vol.I, FCG - Serviço de Ed. e Bolsas,p.487


in memoriam de Francisco Ribeiro

11/09/10

Glosa à chegada do Outono

O corpo não espera. Não. Por nós
ou pelo amor. Este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura acetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sede, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera; este pousar
que não conhece, nada vê, nem nada
ousa temer no seu temor agudo...

Tem tanta pressa o corpo! E já passou,
quando um de nós ou quando o amor chegou.

1958

Jorge de Sena, Versos e alguma prosa de
prefácio e selecção de textos de Eugénio Lisboa,
Co-edição da arcádia e Moraes, p. 56


Com envoiMR

Lembro-me de ti...

  Lembro-me de ti... Na escuridão profunda da memória, o teu olhar ilumina a estrada percorrida na história da minha vida. E sinto, em mim, ...