A arte exprime, por meio dos traçados geométricos a que recorre, uma gama de relações entre os seres ideais que concebe; essas relações não são puramente descritivas nem unicamente racionais. Talvez seja mais legítimo falar de uma geometria "emblemática", onde se conjugam duas ordens de "figuras", uma delas constituída pelo código de sinais convencionados da comunicação utilitária e social, a outra pelo léxico dos símbolos, encarados aqui como sinais do que é linguisticamente incomunicável, como homologias necessariamente precárias daquilo que se atinge, não por comunicado, mas por comunhão.
Lima de Freitas, Almada e o número, Editora Soctip, p. 103
A gente nipónica é inteligente, alegre, volúvel, dissipadora; profundamente sensível às belezas naturais; pouco inventiva, mas dotada de admiráveis aptidões para adoptar os progressos estranhos, de indústria, de arte, de ciência, elevando-os a um alto grau de originalidade, à força de transformá-los. E pouco mais se respiga do enigma moral deste povo, em que é justo supor-se, pelo absoluto recolhimento em que se formou e em que viveu, segredos de alma insondáveis.
Wenceslau de Moraes, Traços do Extremo Oriente, Círculo de Leitores, p. 135
Não há automatismo puro, em arte. Os conflitos e as cintilações do inconsciente produzem uma objectividade que parece desdenhar de toda a objectividade mental. Mas a consciência é a região nobre do automatismo, visto que o inconsciente não tem escrita nem linguagem, excepto a histeria e o seu processo.
Ouve que estranhos pássaros de noite
Tenho defronte da janela:
Pássaros de gritos sobreagudos e selvagens
O peito cor de aurora, o bico roxo,
Falam-se de noite, trazem
Dos abismos da noite lenta e quieta
Palavras estridentes e cruéis.
Cravam no luar as suas garras
E a respiração do terror desce
Das suas asas pesadas.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Antologia, Moraes Editores - Círculo de Poesia, p.100
O fogo telúrico - o karma - é destruidor ou construtivo.
O fogo celeste - o dharma - inspira.
Tudo o resto são palavras mágicas
que te podem levar ao céu ou ao inferno, ao inverno ou à primavera...
e o segredo está em olhar com soberana indiferença o bem e o mal que há em todos os fenómenos e coisas... e nos mistérios
e assim... princípio e fundamento ... ver com amor e vento a brisa
... o cair das folhas,
o intervalo... o nascer dos rebentos, a eclosão das flores...
chegado o tempo para lhes comer os frutos, ó árvore sagrada do jardim do Paraíso...
19/7/76
Ruy Cinatti, Folha volante[in Vyassa, Poema do Senhor Bhagavad-Guitá],
A uma de duas Senhoras desconhecidas com uma declaração de amor
Inclinação semelhante à que vos tenho jamais a houve no mundo. Ignoro absolutamente quem vós sois, e ignoro da mesma forma o vosso nome. Sem embargo desta ignorância há vinte e quatro horas que vos amo, e já podeis contar um dia em que me fizeste padecer e suspirar. Sem nunca vos ter visto o rosto, o acho belo, e acho mui agradável o vosso discurso, sem que vos ouvisse falar. As vossas acções me encantam, e finalmente imagino em vós um não sei quê que me obriga a amar não sei a quem. Parece-me algumas vezes que tendes o cabelo loiro, e outras vezes me parece que o tendes negro. Julgo que sois pequena e ao mesmo tempo me pareceis grande pessoa. Pode ser que passeis da estatura a que chamamos mediana. Tenho assentado em que os vossos olhos são verdes, azues ou pretos, e também tenho assentado em que são duas estrelas por mais escuros ou pardos que eles sejam. De toda a forma que me figuro que sois, me pareceis muito bem, e sem saber qual é a qualidade da vossa formosura estou para jurar que é a mais encantadora e feiticeira. Se vós tendes tão pouco conhecimento de mim e me amais tanto como eu vos amo, tenho muitas graças que dar ao amor e aos astros; porém, para que não vos enganeis comigo e para que vos não sobressalteis quando me virdes, tendo talvez imaginado outra coisa, vos farei pouco mais ou menos o meu retrato. O meu talhe ou a minha estatura é pouco mais que medíocre. A cabeça uns dizem que é boa, outros que é má. O certo é que é curiosa, quando não seja por outro princípio que pelo ornato de cabelos brancos como a neve, misturados com outros negros cabelos, da cor mesmo do azeviche. Os olhos são doces e inquietos; já foram garridos e maganos, porém trinta e cinco Maios que têm visto lhes têm abatido essas qualidades, as quais se eram boas vão-se cansando. Com a minha boca e com a minha língua todos têm que fazer, porém são duas coisas de que até agora se têm queixado somente alguns indignos, viciosos e insolentes, que levantam o testemunho que a minha língua corta como uma navalha. Não temais a falsidade, executai as experiências em que levardes gosto, e vereis que a dita língua, além de ser de carne como todas as outras línguas, é delicada, branda e suave. Finalmente toda a minha cara é diferente de todas as que tendes visto até agora. Uma das vossas amigas vos dirá que eu sou um galante moço. O certo é que para amar três ou quatro formosas ao mesmo tempo, ninguém o faz mais fielmente do que eu. Se vos satisfazeis com estas qualidades, podeis contar que são vossas, pois que as ofereço sinceramente.
Entretanto cuidarei em vós sem saber em quem cuido, e se alguém me preguntar por quem suspiro, não temais que eu o declare, persuadindo-vos com prudência a que eu vos não conhecerei enquanto não souber quem vós sois.
Eu sou verdadeiramente,
Viena de Áustria, 22 de Novembro de 1736
Cavaleiro de Oliveira, Cartas, I, 46, selecção, prefácio e notas de Aquilino Ribeiro, Livraria Sá da Costa Editora, p.103-104