03/12/09
02/12/09
Preço da verdade
No antigo sótão da memória poída,
por trás da colher de pau carunchosa,
sob a roupa velha há-de encontrar-se, ou junto ao muro
carcomido, na poeira
de séculos. Há-de encontrar-se talvez para lá do pálido gesto da mão
velha de algum mendigo, ou na ruína da alma
quando tudo cessou.
Pergunto a mim próprio se é preciso o caminho
poeirento da dúvida tenaz, o desalento súbito
na planície estéril, sob o sol da justiça,
a ruína de toda a esperança, o farrapo coçado do medo, a angústia invencível
[a meio do carreiro que conduz ao torreão desmoronado.
Pergunto a mim próprio se é preciso deixar o caminho real
e meter à esquerda pelo atalho e a vereda,
como se nada tivesse ficado para trás na casa deserta.
Pergunto a mim próprio se é preciso ir sem vacilar até ao horror da noite,
penetrar no abismo, na boca do lobo,
caminhar para trás, de costas para a negação,
ou inverter a verdade, no desolado caminho.
Ou se antes é preciso o soluço de pó na confusão de um verão
terrível, ou no transtornado amanhecer do álcool com trombetas de sonho
saber-se de súbito absolutamente desertos, ou melhor,
é talvez necessário ter-se perdido no sórdido pacto do amor,
ter contratado na sombra uma ilusão,
comprado por dinheiro uma reminiscência de luz, um encanto
de amanhecer por trás da colina, junto ao rio.
Admito a possibilidade de ser absolutamente necessário
ter descido, ao menos uma vez, até ao fundo do edifício escuro,
ter descido, tacteando, o perigo da escada a desfazer-se, que ameaça ceder
[a cada um dos nossos passos,
e ter penetrado por fim com valentia na indignidade, na cave escura.
Ter visitado o lugar da sombra,
o território da cinza, onde a vileza repousa
junto à teia de aranha paciente. Ter-se instalado o pó,
tê-lo mastigado com tenacidade em longas horas de sede
ou de sono. Ter correspondido com coragem ou ousadia
ao silêncio
ou à pergunta derradeira e ter-se ali fortalecido e acautelado.
É preciso ter-se entendido com a verdade criminosa
que nos assalta em plena noite, nos tira o sono e rouba
até ao último centavo. Ter mendigado longos dias depois
pelos bairros mais miseráveis de cada um, sem esperança de recuperar
[o perdido,
e por fim, espoliados, ter continuado o caminho sincero e entrado na
[noite absoluta com coragem ainda.
[Carlos Bousoño, in «Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea», selecção e tradução de José Bento, Assírio e Alvim, p.507-508]
por trás da colher de pau carunchosa,
sob a roupa velha há-de encontrar-se, ou junto ao muro
carcomido, na poeira
de séculos. Há-de encontrar-se talvez para lá do pálido gesto da mão
velha de algum mendigo, ou na ruína da alma
quando tudo cessou.
Pergunto a mim próprio se é preciso o caminho
poeirento da dúvida tenaz, o desalento súbito
na planície estéril, sob o sol da justiça,
a ruína de toda a esperança, o farrapo coçado do medo, a angústia invencível
[a meio do carreiro que conduz ao torreão desmoronado.
Pergunto a mim próprio se é preciso deixar o caminho real
e meter à esquerda pelo atalho e a vereda,
como se nada tivesse ficado para trás na casa deserta.
Pergunto a mim próprio se é preciso ir sem vacilar até ao horror da noite,
penetrar no abismo, na boca do lobo,
caminhar para trás, de costas para a negação,
ou inverter a verdade, no desolado caminho.
Ou se antes é preciso o soluço de pó na confusão de um verão
terrível, ou no transtornado amanhecer do álcool com trombetas de sonho
saber-se de súbito absolutamente desertos, ou melhor,
é talvez necessário ter-se perdido no sórdido pacto do amor,
ter contratado na sombra uma ilusão,
comprado por dinheiro uma reminiscência de luz, um encanto
de amanhecer por trás da colina, junto ao rio.
Admito a possibilidade de ser absolutamente necessário
ter descido, ao menos uma vez, até ao fundo do edifício escuro,
ter descido, tacteando, o perigo da escada a desfazer-se, que ameaça ceder
[a cada um dos nossos passos,
e ter penetrado por fim com valentia na indignidade, na cave escura.
Ter visitado o lugar da sombra,
o território da cinza, onde a vileza repousa
junto à teia de aranha paciente. Ter-se instalado o pó,
tê-lo mastigado com tenacidade em longas horas de sede
ou de sono. Ter correspondido com coragem ou ousadia
ao silêncio
ou à pergunta derradeira e ter-se ali fortalecido e acautelado.
É preciso ter-se entendido com a verdade criminosa
que nos assalta em plena noite, nos tira o sono e rouba
até ao último centavo. Ter mendigado longos dias depois
pelos bairros mais miseráveis de cada um, sem esperança de recuperar
[o perdido,
e por fim, espoliados, ter continuado o caminho sincero e entrado na
[noite absoluta com coragem ainda.
[Carlos Bousoño, in «Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea», selecção e tradução de José Bento, Assírio e Alvim, p.507-508]
29/11/09
14/11/09
Ach, ich fühl's
«Die Zauberflöte», K620,
Wolfgang Amadeus Mozart, Johann Emanuel Schikaneder.
Pamina : Gundula Janowitz, Aix en Provence, 1963
Ach, ich fühl's, es ist verschwunden,
Ewig hin der Liebe Glück!
Nimmer kommt ihr Wonnestunde
Meinem Herzen mehr zurück!
Sieh', Tamino, diese Tränen,
Fließen, Trauter, dir allein!
Fühlst du nicht der Liebe Sehnen,
So wird Ruh' im Tode sein!
Ewig hin der Liebe Glück!
Nimmer kommt ihr Wonnestunde
Meinem Herzen mehr zurück!
Sieh', Tamino, diese Tränen,
Fließen, Trauter, dir allein!
Fühlst du nicht der Liebe Sehnen,
So wird Ruh' im Tode sein!
Ich habe genug
Ich habe genug,
Ich habe den Heiland, das Hoffen der Frommen,
Auf meine begierigen Arme genommen;
Ich habe genug!
Ich hab ihn erblickt,
Mein Glaube hat Jesum ans Herze gedrückt;
Nun wünsch ich, noch heute mit Freuden
Von hinnen zu scheiden.
Ich habe den Heiland, das Hoffen der Frommen,
Auf meine begierigen Arme genommen;
Ich habe genug!
Ich hab ihn erblickt,
Mein Glaube hat Jesum ans Herze gedrückt;
Nun wünsch ich, noch heute mit Freuden
Von hinnen zu scheiden.
09/11/09
Caim
(...)De Abel sabe-se que era pastor. O seu irmão Caim era agricultor e oferecia a Deus em sacrifício uma parte da colheita. Abel quis também oferecer alguma coisa: «Também ele», "gam hu" diz a narração. E não tendo primícias, ofereceu os primogénitos do seu gado. É a primeira vez, e por isso Deus volta-se para esta nova espécie de sacrifício. As traduções aqui falam duma preferência, de um tratamento de favor da parte de Deus. Mas a escritura hebraica usa aqui um verbo bastante raro, "sha'à" (15 casos), que estará duas vezes na boca de Job quando, extenuado pelo sofrimento, grita a Deus: «Como não te afastas de mim, e nem ao menos permites que engula a minha saliva?» (Job 7,19) E ainda mais um igual convite a deixar em paz o homem, a não fincar nele o olhar: «Desvia-te dele, para que repouse» (Job 14,6). E também David no salmo 39 pede com um verbo categórico a Deus: «Desvia-te de mim para que eu me restabeleça» (Sl 38,14). Não é um olhar de favor o de Deus sobre Abel, mas Caim interpreta-o assim porque a oferta atraiu a atenção de Deus, afastando-se das primícias por ele trazidas. E Deus toma consciência daquele sentimento furioso e procura avisar Caim de que nele existe um mal que está a crescer como uma inundação: chama àquela febre "teshuká", uma enchente de águas que transbordam.
Mas aquele irmão Abel tirou-lhe algo mais, intrometendo-se entre ele e Deus. Matá-lo será um acto de puríssima inveja. Porque é esta desde o início a relação entre Deus e o ser humano: de amor exclusivo e recíproco, ao ponto de escrever nas palavras do Sinai que Deus é "El kanná", Deus invejoso que não admite infidelidade.A esta paixão sucumbe, Abel, ignorante, que no fundo imitava Caim nas ofertas, porque desejava a mesma coisa: ser também ele apaixonadamente amado por Deus.
«que diabo de deus é este que, para enaltecer abel, despreza caim?»
José Saramago
06/11/09
Dúvidas
«Quando temos Deus dentro de nós, é para sempre. Não há dúvidas. Podemos ter outras dúvidas, compreende? Mas essa dúvida específica nunca mais a temos. Não, nunca tive dúvidas. [...]Mas estou convencida de que é Ele e não eu. De que a obra é Dele, e não minha. Eu apenas estou à Sua disposição. Sem ele nada posso fazer. Mas nem Deus pode fazer o que quer que seja por uma pessoa que já esteja cheia. Temos de estar completamente esvaziados para O deixar entrar e fazer o que Ele quiser. Essa é a parte mais bela de Deus, compreende? Ser omnipotente, mas não Se impor a ninguém.»
[Madre Teresa, «Vem , sê a minha Luz", Alêtheia Editores, p.264]
30/10/09
Vidas vencidas
«Que eu, toda triste, acho que não sou. O certo é que tanto por mim mesma como pelo próximo, sei mais de tristeza que da alegria. Sou assim como se, dia a dia, me defrontasse com a figura do desengano. Mais até talvez que desengano. Da destruição.
E eis que me acode agora à ideia folhear um antigo caderninho de notas e revelar aqui as minhas juvenis reflexões: "Sou como a Fénix da lenda. Morro e ressuscito. Morro não em ninho de chamas olorosas mas sim na sequidão de um deserto. Que do meu coração quebrado, o renascimento me vem das histórias que crio. As vidas das histórias."
De resto, o enfado das rezas, nessa idade. Pior que enfado, esgotamento. Preces desatentas, as minhas, devido ao peixe dourado do aquário, os círculos que o peixinho desenhava, para trás e para diante, à volta do vidro. Também aos quatro continentes no tecto da sala: Europa, Ásia, África, América. Tão velha a casa que, ao ser construída, decerto não se conhecia ainda a Oceânia.
'Perdoai-nos, Senhor, as nossas ofensas como nós perdoamos'... Rezava-se.
E eu que, então, perdoava tudo. Não hoje, que já sofri de mais.
A ladainha de Nossa Senhora, a criada Elisa quem a recitava num latim estragado: 'Túrris ebúrnea... Janua Caeli...' E nós: 'ora pro nobis, ora pro nobis'. E logo ela! Que entenderia de tal língua? O que seria, afinal, tanto para ela como para nós, aquela arremedada melopeia? Rezava-se à noite e às escuras, para se poupar electricidade.
Na Avenida, contudo, os candeeiros da iluminação pública. Quando não lua cheia na abóbada celeste. Parecia, porém, que se via melhor sem luz. Os rebrilhos do peixe na escuridão líquida e límpida. Os baixos-relevos em estuque no tecto.
Depois de terminadas as orações, a mãe inquieta por causa da galinha de choco na adega. Nem era para menos. Uma semana inteira a pedrês sem sequer engolir um grão. De febre? De fastio? Ai se amanhã de manhã a encontrava morta! Os pintainhos prestes a picar os ovos. Santantoninho!»
E eis que me acode agora à ideia folhear um antigo caderninho de notas e revelar aqui as minhas juvenis reflexões: "Sou como a Fénix da lenda. Morro e ressuscito. Morro não em ninho de chamas olorosas mas sim na sequidão de um deserto. Que do meu coração quebrado, o renascimento me vem das histórias que crio. As vidas das histórias."
De resto, o enfado das rezas, nessa idade. Pior que enfado, esgotamento. Preces desatentas, as minhas, devido ao peixe dourado do aquário, os círculos que o peixinho desenhava, para trás e para diante, à volta do vidro. Também aos quatro continentes no tecto da sala: Europa, Ásia, África, América. Tão velha a casa que, ao ser construída, decerto não se conhecia ainda a Oceânia.
'Perdoai-nos, Senhor, as nossas ofensas como nós perdoamos'... Rezava-se.
E eu que, então, perdoava tudo. Não hoje, que já sofri de mais.
A ladainha de Nossa Senhora, a criada Elisa quem a recitava num latim estragado: 'Túrris ebúrnea... Janua Caeli...' E nós: 'ora pro nobis, ora pro nobis'. E logo ela! Que entenderia de tal língua? O que seria, afinal, tanto para ela como para nós, aquela arremedada melopeia? Rezava-se à noite e às escuras, para se poupar electricidade.
Na Avenida, contudo, os candeeiros da iluminação pública. Quando não lua cheia na abóbada celeste. Parecia, porém, que se via melhor sem luz. Os rebrilhos do peixe na escuridão líquida e límpida. Os baixos-relevos em estuque no tecto.
Depois de terminadas as orações, a mãe inquieta por causa da galinha de choco na adega. Nem era para menos. Uma semana inteira a pedrês sem sequer engolir um grão. De febre? De fastio? Ai se amanhã de manhã a encontrava morta! Os pintainhos prestes a picar os ovos. Santantoninho!»
[Maurice Béjart - "Brel Barbara"]
Avec Elegance
Se sentir quelque peu romain
Mais au temps de la décadence
Gratter sa mémoire à deux mains
Ne plus parler qu'à son silence
Et
Ne plus vouloir se faire aimer
Pour cause de trop peu d'importance
Etre désespéré
Mais avec élégance
Sentir la pente plus glissante
Qu'au temps où le corps étais mince
Lire dans les yeus de ravissantes
Que cinquante ans c'est la province
Et
Brûler sa jeunesse mourante
Mais faire celui qui s'en dispense
Etre désespéré
Mais avec élégance
Sortir pour traverser des bars
Où l'on est chaque fois le plus vieux
Y éclabousser de pourboires
Quelques barmans silencieux
Et
Grignoter des banalités
Avec des vieilles en puissance
Etre désespéré
Mais avec élégance
Savoir qu'on a toujours eu peur
Savoir son poids de lâcheté
Pouvoir se passer de bonheur
Savoir ne plus se pardonner
Et
N'avoir plus grand chose á rêver
Mais écouter son coeur qui danse
Etre désespéré
Mais avec espérance
Jacques Brel
Avec Elegance
Se sentir quelque peu romain
Mais au temps de la décadence
Gratter sa mémoire à deux mains
Ne plus parler qu'à son silence
Et
Ne plus vouloir se faire aimer
Pour cause de trop peu d'importance
Etre désespéré
Mais avec élégance
Sentir la pente plus glissante
Qu'au temps où le corps étais mince
Lire dans les yeus de ravissantes
Que cinquante ans c'est la province
Et
Brûler sa jeunesse mourante
Mais faire celui qui s'en dispense
Etre désespéré
Mais avec élégance
Sortir pour traverser des bars
Où l'on est chaque fois le plus vieux
Y éclabousser de pourboires
Quelques barmans silencieux
Et
Grignoter des banalités
Avec des vieilles en puissance
Etre désespéré
Mais avec élégance
Savoir qu'on a toujours eu peur
Savoir son poids de lâcheté
Pouvoir se passer de bonheur
Savoir ne plus se pardonner
Et
N'avoir plus grand chose á rêver
Mais écouter son coeur qui danse
Etre désespéré
Mais avec espérance
Jacques Brel
28/10/09
Estranhos
«As mulheres e homens que vêm da feira, elas com gamelas à cabeça e eles desasados e de cântaros na mão, passam-me debaixo das janelas como estranhos, que me são.
Dentro de qualquer panelita ou tacho de barro um punhado de sardinhas... E vão, devagar, trajados de domingo, calçados... E eu olho-os indiferente, pensando apenas no barro antiquíssimo de que eles se servem, na petinga salgada que comem, nas suas vidas, paralelas, e jamais concordes, jamais fundíveis com a dos bons proprietários.»
[Irene Lisboa, «Solidão» II, p.222]
Dentro de qualquer panelita ou tacho de barro um punhado de sardinhas... E vão, devagar, trajados de domingo, calçados... E eu olho-os indiferente, pensando apenas no barro antiquíssimo de que eles se servem, na petinga salgada que comem, nas suas vidas, paralelas, e jamais concordes, jamais fundíveis com a dos bons proprietários.»
[Irene Lisboa, «Solidão» II, p.222]
27/10/09
Eis-me aqui
[foto daqui]
«Chamar 'tu' a Deus, com variantes que vão da imprecação à súplica, é o arbítrio maravilhoso da criatura que remonta à sua origem e a interroga, por ela chama e a sacode na distância. Quem pela primeira vez exclamou a primeira oração não a pode ter inventado. Só pode ter reagido a um chamamento com uma resposta, como Abraão com o seu "hinnèni", eis-me aqui. Eis-me aqui é a primeira palavra, a premissa de toda a oração. A criatura separa-se do resto da espécie e da criação, exclui-se para estabelecer a relação. A oração acontece sempre numa extremidade do campo. Lê-se no salmo 78: "E conduziu-os à sua morada santa" (Sl 78,54). Deus leva os hebreus para o deserto, porque aquele é o lugar do encontro. Não os chama num centro, numa praça, mas no isolamento inóspito do vento e do pó.
No deserto: é este o lugar físico da oração. O crente cria o vazio à sua volta e desta forma faz acontecer o encontro.»
[Erri De Luca, «Caroço de Azeitona», Assírio & Alvim, p.7]
No deserto: é este o lugar físico da oração. O crente cria o vazio à sua volta e desta forma faz acontecer o encontro.»
[Erri De Luca, «Caroço de Azeitona», Assírio & Alvim, p.7]
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