11/09/09

O medo

«E agora não estou tomando tua mão para mim. Sou eu quem está te dando a mão.
Agora preciso de tua mão, não para que eu não tenha medo, mas para que tu não tenhas medo. Sei que acreditar em tudo isso será, no começo, a tua grande solidão. Mas chegará o instante em que me darás a mão, não mais por solidão, mas como eu agora: por amor. Como eu, não terás medo de agregar-te à extrema doçura enérgica do Deus. Solidão é ter apenas o destino humano.
E solidão é não precisar. Não precisar deixa um homem muito só, todo só. Ah, precisar não isola a pessoa, a coisa precisa da coisa: basta ver o pinto andando para ver que seu destino será aquilo que a carência fizer dele, seu destino é juntar-se como gotas de mercúrio a outras gotas de mercúrio, mesmo que, como cada gota de mercúrio, ele tenha em si próprio uma existência toda completa e redonda.
Ah, meu amor, não tenhas medo da carência: ela é o nosso destino maior. O amor é tão mais fatal do que eu havia pensado, o amor é tão inerente quanto a própria carência, e nós somos garantidos por uma necessidade que se renovará continuamente. O amor já está, está sempre. Falta apenas o golpe da graça - que se chama paixão.»
[Clarice Lispector, «A Paixão Segundo G.H.», Relógio D'Água, p.136]

01/09/09

A culpa

«(...) nós trazemos na alma a bomba e o problema está em alguém fazer lume para a rebentar. (...) Agora pergunto - se escolheram a maldição e alguém faz lume, quem é o culpado dela rebentar? Como é que um tipo é culpado de trazer uma bomba na alma se foi outro que a fez explodir? E como é que é culpado o tipo que fez o lume, se a bomba não era dele? Qual é a sequência da causa/efeito? Mónica, minha querida, eu posso perfeitamente dizer que a causa, que é o lume, está depois do efeito, que é a bomba. Mas já explico melhor, se valer a pena e não expliquei bem. A minha ideia agora é que o limite de tudo é o incognoscível. Mas temos de nos ir governado, como pudermos para não darmos em doidos e haver ordem na vida. A verdade de tudo há-de esclarecer-se no sem-fim. Mas temos de ser razoáveis para ir vivendo. Admitamos para já que o culpado é o que faz lume». [Vergílio Ferreira, «Em nome da terra», Quetzal, pág.187 e 188]

31/08/09

«A melhor maneira de fugir é ficar parado.

É a fuga da presa que engrandece o caçador. O ficar imóvel é o mais astuto modo de enfrentar o predador: deixar de ter dimensão, converter-se em areia no deserto. Desaparecer para fazer o outro se extinguir.
A melhor maneira de mentir é ficar calado


[Mia Couto in «O Outro pé da Sereia»]

30/08/09

Conselho do avô

Ante o frio,
faz com o coração
o contrário do que fazes com o corpo:
despe-o.
Quanto mais nu,
mais ele encontrará
o único agasalho possível
- um outro coração.


[Mia Couto, «A Chuva Pasmada»]

O criador e a criatura

«Tive de esclarecer a amável estranheza de Q. sobre o meu gosto de não ser conhecida.
Gosto e utilidade!
Mas não esclareci nada.
Tratava-se de atitudes literárias.

Escrever assim como escrevo, sem qualquer ambição de notoriedade, parece-me extraordinariamente útil. Mas não o sei pôr em liguagem clara! Por isso me embrulhei em evasivas. Desnorteei Q., que com a sua galantaria de lisboeta e de letrado, uma galantaria muito especial, me convidava a aparecer... Não sei onde, nem como.
Eu suponho, em boa verdade, que os anonimatos, que a folga e a inteligência dos anonimatos, se não podem definir bem. Que por si se justificam. Um anonimato é vital e elementar, espontaneamente útil; cobre as necessidade de cada um que o usa, esporádicas ou permanentes. Mas há quem tome o anonimato dos artistas por uma espécie de tarrafias, de gracinhas, de jogo ou de vaidade... E sê-lo-à!
A mim, porém, qualquer coisa de mais grave e mais indeterminada me tem levado a adoptar o anonimato, os pseudónimos. Talvez um subtil espírito utilitário, de defesa. De inversão da arrogância, da combatividade, também. De timidez, ou de fuga à responsabilidade intelectual, ainda... Não posso precisar perfeitamente o que seja! Eu julgo ter ainda sobre tudo isto, levemente contingente e exterior, a fugir-lhe... uma noção de que à obra de arte, reservada, independente, se pode ligar toda a indeterminação que lhe apraza, que lhe quadre!
Que significa um nome de autor? Nada! À roda destas coisas ligeiras que eu aproveito para meus temas literários, porque não há-de flutuar um dos meus nomes de ocasião? Tanto faz que seja X o protagonista, como X o seu explorador...
A literatura teve sempre muito de aberrativa, de fantasista. Nomes, pseudónimos, têm absolutamente o mesmo valor das figuras e das localidades. Não valorizam as obras.
E sendo a minha análise sempre tão cingida ao passageiro, sendo uma espécie de exploração da rápida eventualidade, não poderá admitir, com sofrível elegância, com propriedade, a variedade dos pseudónimos?
Este meu escrever sobre 'nadas', creio que até me chega a dar uma absoluta indiferença pelas 'categorias' literárias! Me desinteressa de todo o rang e classe... Me inquina cada vez mais de uma corajosa e perversa paixão de liberdade.
Os pseudónimos não me encobrem dos profissionais das letras, naturalmente!
Mas o mundo deles não é o meu...
O meu, o que por mim se interessa, com boa ou ruim humanidade, não é de letrados nem de artistas, nem sequer de gente de boa sociedade. É de gente de letras grossas! Grosseira, talvez, mas nem melhor nem pior que outra.
Se eu assinasse com o meu nome civil as bagatelas que escrevo, por quem é que seria tomada? Por uma extravagante, por uma deformada. E os que têm confiança em mim, deixariam de a ter.
Devo ser prudente. Com a minha gente é que me tenho sempre encontrado, dela é que eu sou um ruim e claudicante membro, mas ainda assim, não desprezado... Esquecê-lo, seria ingratidão.»

[Irene Lisboa, «Solidão» I, Editorial Presença, pág. 89 e 90]

25/08/09

Egos

«As pessoas bem bem lá no fundo são todas uns mundos que passeiam em órbita sem quererem instintivamente tocar nas outras. Têm de respeitar-se as regras de trânsito, como nos jogos, ao menos isso, estabelecer leis, codificar a natureza rebelde, implacavelmente viva na luta» [Ruben A., «O mundo à minha procura», III vol, p.48]

21/08/09

Vim, para isto.

«Achei, enfim.
Estava folheando o diário de K.M. à procura de um pequeníssimo quadro, de que me lembrava e me parecia falso, benévolo, fantasista.
Apraz-me rectificá-lo.
São poucas as frases de lá. É um quadro verbal. Suponhamos que é isto:
Vim, diz ele.
E ela: sim?
Para isto... diz ele ainda, e puxa-a para si.
Ela, impressionada, sente-se desfalecer.
A minha rectificação pode vir a ter um ar tão gratuito como a fantasia de K.M., mas para mim é a minha... aquilo que sobre o facto admito ou penso. Enfim, anulo a precipitação dele e o pronto desfalecimento dela.
Ele chega, sobre as escadas. Nestas escadas não há espécie de mistério, nem tão pouco na terra nem na rua. Em parte nenhuma se manifesta, se respira aquela atmosfera pesada e excitante, que costuma animar a literatura irrealista.
Ele chega, ela espera-o. Espera-o sem feliz inquietação nem consolo. É uma mulher desconsolada. Pensa que ele não venha, que já não apareça; espera-o sempre sem confiança.
Mas para ele foi preparando uma infinidade de pequenas coisas graciosas, de que ele nunca se aperceberá. Deu-se a tarefas sucessivas, como as noivas. Espera-o com indiferença e tenacidade, é curioso! E despreza-o. Como o não conhece muito tem a impressão de que ele é caprichoso e também venal. Mas apesar da insegurança que sente, e da sua resistência, acha que ele representa muito para ela, que representa o mistério... É a luz e ela a borboleta cega.
Enfim, ele chega. O seu toque com os nós dos dedos à porta surpreende-a. Abre-lhe a porta e ele entra, mas de repente. Tão furtivamente, porquê? Ela pensava que lhe havia de ir abrir a porta em baixo (o fecho estava escangalhado), que não acenderia a luz, que ele a beijaria na escada... Tudo fatalidades, preconcebidas e agradáveis, como as do pequeno quadro de K.M.
Mas não! Ele entra rapidamente, embora sem intimidade, mostrando-se desde logo intruso. Depois apertam-se as mãos e sentam-se. A casa é pequena e faz frio. Os joelhos dele tocam os dela. Ela faz-lhe perguntas sem importância nenhuma, de amabilidade. Ele pouco fala. Vem de longe... Ri. É engraçado, realmente, um pouco estranho, um pouco esquivo. Ela sente-se desconcertada. Ele olha-a, diz-lhe coisas soltas sem pensar, e chega-se mais. Afinal viera... o coração dela mirra. Sente-se tão pouco desenvolta! Aceita tudo, desconsolada. Um abismo os separa, um abismo! E nem ele nada quer dela, mas beija-a. E beijando-a se excita.
Mas como se tinham beijado já? Nunca assim. Como se tinham beijado naquelas noites de Outono... sobretudo numa tão formosa, tão longa e tão estrelada, que ainda lhe parecia desgarrada, única? Nunca assim...Sem se importarem com o tempo! Com gosto perfeito ou imperfeito, sincero ou iludido, mas com uma sensação tão empolgante de desejo! Uma sensação tão rara de ânsia e de sofreguidão! Não se tinham dado um ao outro, ele negara-se, mas tinham-se doidamente beijado e desejado. Embriagado de enervamento e de cansaço.
E agora? Ele ali estava, mas como um desconhecido. Era um imoral, um céptico. Por fim ela põe-lhe levemente as mãos na cara. Fita-o muito de perto. Os olhos assim vistos fascinam. Parecem presos e mais largos, dominados... Os olhos dela, tristes, seguem o movimento vagaroso dos dele, a sua expressão ora paciente, ora maliciosa. Por fim uns e outros se cansam.
Mas se uma pequena palavra, um pequeníssimo acordo de intimidade se estabelecesse...
Ele sempre fala. E que lhe diz?
Umas coisas tão mesquinhas e tão calculadas! Tão inúteis, e mesmo tão vexatórias!
Ela, pisada, arrefecida, ouve-as.
Para aquilo viera... Há cobardia na sua atitude. Mas para quê ter vindo? Só para a ofender e humilhar?
O cálculo dos homens! As suas desculpas! Sempre e só o cálculo...
Aquela amargura que ela sentia não era nova. Não, não era. Ela conhecia-a, parecia-lhe que já desde a eternidade... Os homens abusavam dela, da sua real inocência.
E chorou. Caíram-lhe as lágrimas pela cara abaixo. Mas logo uma súbita secura a impassibilizou. Envergonhou-se de ser fraca.
E ele voltou a beijá-la. Talvez que a desculpar-se. Por fim beijaram-se com teima. E ele ficou.»
[Irene Lisboa, «Solidão», I volume, Editorial Presença, pág. 39-41]

17/08/09

Escuridão

«Sim, havia profundeza nela. Mas ninguém encontraria nada se descesse nas suas profundezas - senão a própria profundeza, como na escuridão se acha a escuridão. É possível que, se alguém prosseguisse mais, encontrasse, depois de andar léguas nas trevas, um indício de caminho, guiado talvez por um bater de asas, por algum rastro de bicho. E - de repente - a floresta.» [Clarice Lispector, «Felicidade Clandestina»]

13/08/09

A causa depois do efeito

«Sim, sim, Mónica. A causa depois do efeito. A minha tese é esta, minha querida - nós trazemos na alma uma bomba e o problema está em alguém fazer lume para a rebentar. (...) Alguns têm a sorte ou a desgraça de alguém fazer lume para rebentarem o que são, ver-se o que estava por baixo do que estava por cima. Mas outros vão para a cova na ignorância. Às vezes fazem ensaios porque a pressão interior é muito forte. Ou passam a vida à espera de um sinal, um indício elucidativo. Ou passam-na sem saberem que trazem a bomba na alma que às vezes ainda rebenta, mesmo já no cemitério.» [Vergílio Ferreira, «Em nome da terra», Quetzal, pág.187]

Lembro-me de ti...

  Lembro-me de ti... Na escuridão profunda da memória, o teu olhar ilumina a estrada percorrida na história da minha vida. E sinto, em mim, ...