17/09/09

Notas ao acaso

«Sofro a necessidade do amor, penso às vezes. E creio senti-la.
Sofro do amor sem partilha, decepcionado. Sofro de desânimo, de desejo, de desalento; sofro
.
Aperta-me, comprime-me a secura dos outros. O seu egoísmo, a sua insociabilidade, ou a sua falsa, interesseira sociabilidade, a sua dureza, a sua aridez, a sua volubilidade! Sinto-me repelida por tudo isto.
E não serei... não serei...
Haveria jamais amor que me contentasse?
Correspondência para a minha pobreza e ânsia?

Mas conquistada ela - com o que não sonho - não me sentiria liberta para me deslocar sempre, em corpo e em espírito, em realidade e em desejos?»
[Irene Lisboa, Solidão II, p.55]

14/09/09

A perfeição

«O Teo é perfeito e isso é terrível e luminoso no meio da imperfeição humana. Ele é perfeito por fora, o nosso filho, mas sobretudo por dentro, onde deve ter uma alma com uma exactidão e firmeza de geometria. Eu não sei se ele tem dúvidas, mas a perfeição também é um hábito com que se insiste e então não as tem.» [Vergílio Ferreira, «Em nome da Terra», Quetzal, pág.248]


«Um homem verdadeiramente bom é recto, como um quadrado, sem irregularidades» [ Aristóteles, «Ética a Nicómaco»]

12/09/09

A matéria primordial



«Dá-me a tua mão:
Vou te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois factos existe um facto, entre dois grãos de areia, por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo e aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio
[Clarice Lispector, «A Paixão Segundo G.H.», Relógio d'Água, p.79]

11/09/09

O medo

«E agora não estou tomando tua mão para mim. Sou eu quem está te dando a mão.
Agora preciso de tua mão, não para que eu não tenha medo, mas para que tu não tenhas medo. Sei que acreditar em tudo isso será, no começo, a tua grande solidão. Mas chegará o instante em que me darás a mão, não mais por solidão, mas como eu agora: por amor. Como eu, não terás medo de agregar-te à extrema doçura enérgica do Deus. Solidão é ter apenas o destino humano.
E solidão é não precisar. Não precisar deixa um homem muito só, todo só. Ah, precisar não isola a pessoa, a coisa precisa da coisa: basta ver o pinto andando para ver que seu destino será aquilo que a carência fizer dele, seu destino é juntar-se como gotas de mercúrio a outras gotas de mercúrio, mesmo que, como cada gota de mercúrio, ele tenha em si próprio uma existência toda completa e redonda.
Ah, meu amor, não tenhas medo da carência: ela é o nosso destino maior. O amor é tão mais fatal do que eu havia pensado, o amor é tão inerente quanto a própria carência, e nós somos garantidos por uma necessidade que se renovará continuamente. O amor já está, está sempre. Falta apenas o golpe da graça - que se chama paixão.»
[Clarice Lispector, «A Paixão Segundo G.H.», Relógio D'Água, p.136]

01/09/09

A culpa

«(...) nós trazemos na alma a bomba e o problema está em alguém fazer lume para a rebentar. (...) Agora pergunto - se escolheram a maldição e alguém faz lume, quem é o culpado dela rebentar? Como é que um tipo é culpado de trazer uma bomba na alma se foi outro que a fez explodir? E como é que é culpado o tipo que fez o lume, se a bomba não era dele? Qual é a sequência da causa/efeito? Mónica, minha querida, eu posso perfeitamente dizer que a causa, que é o lume, está depois do efeito, que é a bomba. Mas já explico melhor, se valer a pena e não expliquei bem. A minha ideia agora é que o limite de tudo é o incognoscível. Mas temos de nos ir governado, como pudermos para não darmos em doidos e haver ordem na vida. A verdade de tudo há-de esclarecer-se no sem-fim. Mas temos de ser razoáveis para ir vivendo. Admitamos para já que o culpado é o que faz lume». [Vergílio Ferreira, «Em nome da terra», Quetzal, pág.187 e 188]

31/08/09

«A melhor maneira de fugir é ficar parado.

É a fuga da presa que engrandece o caçador. O ficar imóvel é o mais astuto modo de enfrentar o predador: deixar de ter dimensão, converter-se em areia no deserto. Desaparecer para fazer o outro se extinguir.
A melhor maneira de mentir é ficar calado


[Mia Couto in «O Outro pé da Sereia»]

30/08/09

Conselho do avô

Ante o frio,
faz com o coração
o contrário do que fazes com o corpo:
despe-o.
Quanto mais nu,
mais ele encontrará
o único agasalho possível
- um outro coração.


[Mia Couto, «A Chuva Pasmada»]

O criador e a criatura

«Tive de esclarecer a amável estranheza de Q. sobre o meu gosto de não ser conhecida.
Gosto e utilidade!
Mas não esclareci nada.
Tratava-se de atitudes literárias.

Escrever assim como escrevo, sem qualquer ambição de notoriedade, parece-me extraordinariamente útil. Mas não o sei pôr em liguagem clara! Por isso me embrulhei em evasivas. Desnorteei Q., que com a sua galantaria de lisboeta e de letrado, uma galantaria muito especial, me convidava a aparecer... Não sei onde, nem como.
Eu suponho, em boa verdade, que os anonimatos, que a folga e a inteligência dos anonimatos, se não podem definir bem. Que por si se justificam. Um anonimato é vital e elementar, espontaneamente útil; cobre as necessidade de cada um que o usa, esporádicas ou permanentes. Mas há quem tome o anonimato dos artistas por uma espécie de tarrafias, de gracinhas, de jogo ou de vaidade... E sê-lo-à!
A mim, porém, qualquer coisa de mais grave e mais indeterminada me tem levado a adoptar o anonimato, os pseudónimos. Talvez um subtil espírito utilitário, de defesa. De inversão da arrogância, da combatividade, também. De timidez, ou de fuga à responsabilidade intelectual, ainda... Não posso precisar perfeitamente o que seja! Eu julgo ter ainda sobre tudo isto, levemente contingente e exterior, a fugir-lhe... uma noção de que à obra de arte, reservada, independente, se pode ligar toda a indeterminação que lhe apraza, que lhe quadre!
Que significa um nome de autor? Nada! À roda destas coisas ligeiras que eu aproveito para meus temas literários, porque não há-de flutuar um dos meus nomes de ocasião? Tanto faz que seja X o protagonista, como X o seu explorador...
A literatura teve sempre muito de aberrativa, de fantasista. Nomes, pseudónimos, têm absolutamente o mesmo valor das figuras e das localidades. Não valorizam as obras.
E sendo a minha análise sempre tão cingida ao passageiro, sendo uma espécie de exploração da rápida eventualidade, não poderá admitir, com sofrível elegância, com propriedade, a variedade dos pseudónimos?
Este meu escrever sobre 'nadas', creio que até me chega a dar uma absoluta indiferença pelas 'categorias' literárias! Me desinteressa de todo o rang e classe... Me inquina cada vez mais de uma corajosa e perversa paixão de liberdade.
Os pseudónimos não me encobrem dos profissionais das letras, naturalmente!
Mas o mundo deles não é o meu...
O meu, o que por mim se interessa, com boa ou ruim humanidade, não é de letrados nem de artistas, nem sequer de gente de boa sociedade. É de gente de letras grossas! Grosseira, talvez, mas nem melhor nem pior que outra.
Se eu assinasse com o meu nome civil as bagatelas que escrevo, por quem é que seria tomada? Por uma extravagante, por uma deformada. E os que têm confiança em mim, deixariam de a ter.
Devo ser prudente. Com a minha gente é que me tenho sempre encontrado, dela é que eu sou um ruim e claudicante membro, mas ainda assim, não desprezado... Esquecê-lo, seria ingratidão.»

[Irene Lisboa, «Solidão» I, Editorial Presença, pág. 89 e 90]

25/08/09

Egos

«As pessoas bem bem lá no fundo são todas uns mundos que passeiam em órbita sem quererem instintivamente tocar nas outras. Têm de respeitar-se as regras de trânsito, como nos jogos, ao menos isso, estabelecer leis, codificar a natureza rebelde, implacavelmente viva na luta» [Ruben A., «O mundo à minha procura», III vol, p.48]

Lembro-me de ti...

  Lembro-me de ti... Na escuridão profunda da memória, o teu olhar ilumina a estrada percorrida na história da minha vida. E sinto, em mim, ...