11/12/09
10/12/09
A xícara
«Extraordinário como as coisas, até as mais simples, podem comunicar felicidade ou tristeza. Uma vivência longínqua fica-lhes colada para sempre e basta, assim, a sua presença para no-la fazer reviver. Era em Angola e eu estava de visita àquela família.
D. Eugénia, a dona da casa, pusera a mesa para o pequeno-almoço: o pão, a manteiga, os bules do café e do leite. Tudo comum, conhecido de cada manhã, excepto a xícara. Esta, especial, com uma paisagem no bojo e um pires alongado em forma de palmatória onde caberiam torradas ou uma fatia de bolo.
E senti uma pancada na porta fechada das minhas lembranças.
A casa paterna abria-se diante de mim, adolescente, e a mãe, pálida, na cama, tomava o leite pela xícara de louça fina, tão fina que se via a bebida descendo lentamente.
Dias infelizes esses em que a mãe estava doente, mas aquela recordação era boa até às lágrimas: as cortinas de renda no quarto sombrio, o cheiro doce do chá de tília, o anoitecer penoso como dor física, as palavras que se diziam e que soavam sempre absurdas.
Na cabeceira da cama, um rosário de madeira, tão comprido que se diria de frade franciscano, e no canto sobre o qual a porta abria, a mancha clara do oleado novo a remendar o antigo que se tinha rompido.
Agora, D. Eugénia admoestava as crianças, contava de planos caseiros, de desavenças com os criados.
Fora, a manhã ia alta. Percebia-se o calor por entre as persianas semi-cerradas.
De novo a casa paterna. (A xícara, a única coisa viva ali, e as pessoas meros objectos decorativos.) Ser-me-ia fácil aspirar o aroma das maçãs camoesas no armário da roupa, repetir as orações que nesse tempo rezava ao deitar.
No espelho da cómoda, grande, oval, a minha imagem aparecia nítida e esplêndida. Nunca mais depois encontrara espelhos iguais aos de casa. Sem defeito, aqueles. As feições das pessoas reflectiam-se lá distintamente marcadas. Os espelhos das casas dos outros, os espelhos das pensões, os espelhos dos «lares», eram sem categoria todos, e a gente surgia neles miseravelmente vulgar.
Ainda a figura da mãe: face definhada, cabelo grisalho, o corpo recostado em almofadas. Deus meu, como parecia velha! Tivera essa surpresa uma tarde, ao olhar para o espelho da cómoda defronte do leito. A morte insinuava-se através do cristal.
Um dos meninos pediu o urso amarelo. A dona de casa chamou o negro que veio da cozinha a limpar as mãos ao avental.
Numa tacinha de vidro, na mesa, bolachas cobertas de açúcar areado.
E a intimidade crescia como massa de pão a levedar.
Na casa de hóspedes onde vivia, tinha eu o mesmo café com leite em bules de metal, porém a chávena, de faiança branca, bordos grossos, letras azuis a marcar.
Que importava que aquela terra fosse argilosa e quente, que as pessoas em redor me não pertencessem nem pelo sangue nem pela tradição, se de repente me encontrava na porcelana da xícara?
Os dedos tremiam-me.
Para lá da vida estava a minha gente. Os que amara tinham a pouco e pouco atravessado o espelho. Sabia que não eram mais meus, mas podia ver-lhes a imagem, lembrava-os, acreditava neles. Por vezes possuía-os em sonhos - uma espécie de revelação do mundo da morte em que cada um se erguia solene, indiferente, superior.
O centro da mesa com flores artificiais esta prestes a ser derrubado por um dos pequenos. A mãe ralhou. A criança foi acabar a refeição na cozinha.
Lá fora, o pregão da Notícia. Passos na escada. D. Eugénia interrompeu a torrada. O jornal de domingo trazia-lhe sempre certa excitação.
Outros passos. Estes ritmados, firmes. Fazia escuro e vinham da rua. Ao entrar o corredor o seu som enfraquecia.
Nas paredes do quarto a chama da lamparina era tonta, dançando.
Murmúrio de vozes. A doente suspirava.
Ele trazia consigo o hálito da noite, a gabardina rangia no corpo alto, o rosto vincava-se de preocupação.
Mas o afastar dos passos isso é que jamais poderia ser esquecido.
E os dias passados voltavam a passar ali, ao mesmo tempo lúcidos e indefinidos, como se nunca os tivesse vivido de todo. Restava-me deles um amargor e a solidão que se me agarrara ao peito como hera a um muro.
O calor enchia já a sala. Alguém me ofereceu um leque. O negro veio de dentro com recado do patrão para se ir para a praia. Toda a gente se ergueu e as crianças alvoroçaram-se.
De tão pesado, o ar bem podia ter feito estalar a porcelana da xícara.»
08/12/09
Ilusões e desilusões (1)
«Uma vez, Chuang Chou sonhou que era uma borboleta (...)
Subitamente acordou e lá estava ele, o verdadeiro e inconfundível Chuang Chou. Mas não sabia se era Chuang Chou que sonhara ser uma borboleta, ou se era uma borboleta a sonhar que era Chuang Chou». Chung Tzu,
«Pessoas como nós, que acreditam na Física, sabem que a distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosa e persistente.» Albert Einstein
[Thomas J. Mcfarlane, «Einstein e Buda»», estrela polar, p.116 e 150]
07/12/09
Angústia II
«"Quando eu estava na angústia, invoquei-te, SENHOR,
e tu respondeste-me;
do fundo do abismo, gritei por ti
e ouviste o meu pedido.
Atiraste comigo para as profundezas do mar
e a corrente envolveu-me;
as tuas ondas e as tuas vagas
passaram por cima de mim.
Pensei que me tivesses expulsado
para longe da tua presença.
Como poderia voltar a ver
o teu santo templo
As águas cobrem-me até à garganta,
o abismo engoliu-me,
as algas enrolaram-se-me à cabeça.
Desci até aos alicerces das montanhas
e os ferrolhos da morte fecharam-se atrás de mim para sempre.
Mas tu, SENHOR, fizeste-me sair vivo do sepulcro.
Quando eu estava a desfalecer,
lembrei-me de ti, SENHOR,
apresentei-te a minha oração,
que chegou ao teu santo templo.
Aqueles que adoram ídolos sem valor
quebram a fidelidade para contigo.
Mas eu, com hinos de gratidão,
hei-de oferecer-te um sacrifício
e cumprirei as minhas promessas.
Só tu, SENHOR, podes livrar-nos do perigo!"
E o SENHOR fez com que o peixe fosse vomitar Jonas em terreno firme.»
[«a Bíblia para todos - edição literária», Círculo dos Leitores, p.1026]
e tu respondeste-me;
do fundo do abismo, gritei por ti
e ouviste o meu pedido.
Atiraste comigo para as profundezas do mar
e a corrente envolveu-me;
as tuas ondas e as tuas vagas
passaram por cima de mim.
Pensei que me tivesses expulsado
para longe da tua presença.
Como poderia voltar a ver
o teu santo templo
As águas cobrem-me até à garganta,
o abismo engoliu-me,
as algas enrolaram-se-me à cabeça.
Desci até aos alicerces das montanhas
e os ferrolhos da morte fecharam-se atrás de mim para sempre.
Mas tu, SENHOR, fizeste-me sair vivo do sepulcro.
Quando eu estava a desfalecer,
lembrei-me de ti, SENHOR,
apresentei-te a minha oração,
que chegou ao teu santo templo.
Aqueles que adoram ídolos sem valor
quebram a fidelidade para contigo.
Mas eu, com hinos de gratidão,
hei-de oferecer-te um sacrifício
e cumprirei as minhas promessas.
Só tu, SENHOR, podes livrar-nos do perigo!"
E o SENHOR fez com que o peixe fosse vomitar Jonas em terreno firme.»
[«a Bíblia para todos - edição literária», Círculo dos Leitores, p.1026]
05/12/09
03/12/09
02/12/09
Preço da verdade
No antigo sótão da memória poída,
por trás da colher de pau carunchosa,
sob a roupa velha há-de encontrar-se, ou junto ao muro
carcomido, na poeira
de séculos. Há-de encontrar-se talvez para lá do pálido gesto da mão
velha de algum mendigo, ou na ruína da alma
quando tudo cessou.
Pergunto a mim próprio se é preciso o caminho
poeirento da dúvida tenaz, o desalento súbito
na planície estéril, sob o sol da justiça,
a ruína de toda a esperança, o farrapo coçado do medo, a angústia invencível
[a meio do carreiro que conduz ao torreão desmoronado.
Pergunto a mim próprio se é preciso deixar o caminho real
e meter à esquerda pelo atalho e a vereda,
como se nada tivesse ficado para trás na casa deserta.
Pergunto a mim próprio se é preciso ir sem vacilar até ao horror da noite,
penetrar no abismo, na boca do lobo,
caminhar para trás, de costas para a negação,
ou inverter a verdade, no desolado caminho.
Ou se antes é preciso o soluço de pó na confusão de um verão
terrível, ou no transtornado amanhecer do álcool com trombetas de sonho
saber-se de súbito absolutamente desertos, ou melhor,
é talvez necessário ter-se perdido no sórdido pacto do amor,
ter contratado na sombra uma ilusão,
comprado por dinheiro uma reminiscência de luz, um encanto
de amanhecer por trás da colina, junto ao rio.
Admito a possibilidade de ser absolutamente necessário
ter descido, ao menos uma vez, até ao fundo do edifício escuro,
ter descido, tacteando, o perigo da escada a desfazer-se, que ameaça ceder
[a cada um dos nossos passos,
e ter penetrado por fim com valentia na indignidade, na cave escura.
Ter visitado o lugar da sombra,
o território da cinza, onde a vileza repousa
junto à teia de aranha paciente. Ter-se instalado o pó,
tê-lo mastigado com tenacidade em longas horas de sede
ou de sono. Ter correspondido com coragem ou ousadia
ao silêncio
ou à pergunta derradeira e ter-se ali fortalecido e acautelado.
É preciso ter-se entendido com a verdade criminosa
que nos assalta em plena noite, nos tira o sono e rouba
até ao último centavo. Ter mendigado longos dias depois
pelos bairros mais miseráveis de cada um, sem esperança de recuperar
[o perdido,
e por fim, espoliados, ter continuado o caminho sincero e entrado na
[noite absoluta com coragem ainda.
[Carlos Bousoño, in «Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea», selecção e tradução de José Bento, Assírio e Alvim, p.507-508]
por trás da colher de pau carunchosa,
sob a roupa velha há-de encontrar-se, ou junto ao muro
carcomido, na poeira
de séculos. Há-de encontrar-se talvez para lá do pálido gesto da mão
velha de algum mendigo, ou na ruína da alma
quando tudo cessou.
Pergunto a mim próprio se é preciso o caminho
poeirento da dúvida tenaz, o desalento súbito
na planície estéril, sob o sol da justiça,
a ruína de toda a esperança, o farrapo coçado do medo, a angústia invencível
[a meio do carreiro que conduz ao torreão desmoronado.
Pergunto a mim próprio se é preciso deixar o caminho real
e meter à esquerda pelo atalho e a vereda,
como se nada tivesse ficado para trás na casa deserta.
Pergunto a mim próprio se é preciso ir sem vacilar até ao horror da noite,
penetrar no abismo, na boca do lobo,
caminhar para trás, de costas para a negação,
ou inverter a verdade, no desolado caminho.
Ou se antes é preciso o soluço de pó na confusão de um verão
terrível, ou no transtornado amanhecer do álcool com trombetas de sonho
saber-se de súbito absolutamente desertos, ou melhor,
é talvez necessário ter-se perdido no sórdido pacto do amor,
ter contratado na sombra uma ilusão,
comprado por dinheiro uma reminiscência de luz, um encanto
de amanhecer por trás da colina, junto ao rio.
Admito a possibilidade de ser absolutamente necessário
ter descido, ao menos uma vez, até ao fundo do edifício escuro,
ter descido, tacteando, o perigo da escada a desfazer-se, que ameaça ceder
[a cada um dos nossos passos,
e ter penetrado por fim com valentia na indignidade, na cave escura.
Ter visitado o lugar da sombra,
o território da cinza, onde a vileza repousa
junto à teia de aranha paciente. Ter-se instalado o pó,
tê-lo mastigado com tenacidade em longas horas de sede
ou de sono. Ter correspondido com coragem ou ousadia
ao silêncio
ou à pergunta derradeira e ter-se ali fortalecido e acautelado.
É preciso ter-se entendido com a verdade criminosa
que nos assalta em plena noite, nos tira o sono e rouba
até ao último centavo. Ter mendigado longos dias depois
pelos bairros mais miseráveis de cada um, sem esperança de recuperar
[o perdido,
e por fim, espoliados, ter continuado o caminho sincero e entrado na
[noite absoluta com coragem ainda.
[Carlos Bousoño, in «Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea», selecção e tradução de José Bento, Assírio e Alvim, p.507-508]
29/11/09
14/11/09
Ach, ich fühl's
«Die Zauberflöte», K620,
Wolfgang Amadeus Mozart, Johann Emanuel Schikaneder.
Pamina : Gundula Janowitz, Aix en Provence, 1963
Ach, ich fühl's, es ist verschwunden,
Ewig hin der Liebe Glück!
Nimmer kommt ihr Wonnestunde
Meinem Herzen mehr zurück!
Sieh', Tamino, diese Tränen,
Fließen, Trauter, dir allein!
Fühlst du nicht der Liebe Sehnen,
So wird Ruh' im Tode sein!
Ewig hin der Liebe Glück!
Nimmer kommt ihr Wonnestunde
Meinem Herzen mehr zurück!
Sieh', Tamino, diese Tränen,
Fließen, Trauter, dir allein!
Fühlst du nicht der Liebe Sehnen,
So wird Ruh' im Tode sein!
Ich habe genug
Ich habe genug,
Ich habe den Heiland, das Hoffen der Frommen,
Auf meine begierigen Arme genommen;
Ich habe genug!
Ich hab ihn erblickt,
Mein Glaube hat Jesum ans Herze gedrückt;
Nun wünsch ich, noch heute mit Freuden
Von hinnen zu scheiden.
Ich habe den Heiland, das Hoffen der Frommen,
Auf meine begierigen Arme genommen;
Ich habe genug!
Ich hab ihn erblickt,
Mein Glaube hat Jesum ans Herze gedrückt;
Nun wünsch ich, noch heute mit Freuden
Von hinnen zu scheiden.
09/11/09
Caim
(...)De Abel sabe-se que era pastor. O seu irmão Caim era agricultor e oferecia a Deus em sacrifício uma parte da colheita. Abel quis também oferecer alguma coisa: «Também ele», "gam hu" diz a narração. E não tendo primícias, ofereceu os primogénitos do seu gado. É a primeira vez, e por isso Deus volta-se para esta nova espécie de sacrifício. As traduções aqui falam duma preferência, de um tratamento de favor da parte de Deus. Mas a escritura hebraica usa aqui um verbo bastante raro, "sha'à" (15 casos), que estará duas vezes na boca de Job quando, extenuado pelo sofrimento, grita a Deus: «Como não te afastas de mim, e nem ao menos permites que engula a minha saliva?» (Job 7,19) E ainda mais um igual convite a deixar em paz o homem, a não fincar nele o olhar: «Desvia-te dele, para que repouse» (Job 14,6). E também David no salmo 39 pede com um verbo categórico a Deus: «Desvia-te de mim para que eu me restabeleça» (Sl 38,14). Não é um olhar de favor o de Deus sobre Abel, mas Caim interpreta-o assim porque a oferta atraiu a atenção de Deus, afastando-se das primícias por ele trazidas. E Deus toma consciência daquele sentimento furioso e procura avisar Caim de que nele existe um mal que está a crescer como uma inundação: chama àquela febre "teshuká", uma enchente de águas que transbordam.
Mas aquele irmão Abel tirou-lhe algo mais, intrometendo-se entre ele e Deus. Matá-lo será um acto de puríssima inveja. Porque é esta desde o início a relação entre Deus e o ser humano: de amor exclusivo e recíproco, ao ponto de escrever nas palavras do Sinai que Deus é "El kanná", Deus invejoso que não admite infidelidade.A esta paixão sucumbe, Abel, ignorante, que no fundo imitava Caim nas ofertas, porque desejava a mesma coisa: ser também ele apaixonadamente amado por Deus.
«que diabo de deus é este que, para enaltecer abel, despreza caim?»
José Saramago
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