16/09/11

A inteligência




(...) a inteligência, embora divina e digna de toda a veneração, tem o costume de se acoitar nas mais repugnantes carcaças, além de que infelizmente se comporta como um canibal entre as restantes faculdades, de forma que muitas vezes, quando o Espírito se agiganta, o Coração, os Sentidos, a Magnanimidade, a Caridade, a Tolerância, a Bondade e todas as demais ficam quase sem espaço para respirar. Daí a alta conta em que se têm os poetas; daí a baixa conta em que se têm uns aos outros; daí as inimizades, as injúrias, as invejas e as querelas em que constantemente se empenham; daí a volubilidade com que as dão a conhecer; daí a avidez com que exigem simpatia pela sua causa;(...)

Virgínia Woolf, Orlando - Uma biografia , Relógio D'Agua Editores, p.149-150 

       

12/09/11

À prova de bala

Todos os escritores (artistas) são infelizes - leio de vez em quando, não sei onde. Mas afirmá-lo o próprio não será petulância? um modo de se dizer merecedor de compaixão? um modo de 'denegar' a sua grandeza? ou a convicção dela? Das muitas injúrias com que me vão medalhando, há duas que me intrigam - a de que sou um «vaidosão» e a de que sou um «invejoso». Porque se me revejo em comprazimento e subsequente vaidade, como posso ser invejoso? E se sou invejoso, como é que posso ser vaidosão? As duas coisas é que não. É portanto favor escolherem. (...) Retornemos à primeira frase - todos os escritores são infelizes. Porque é verdade. Mas se eu disser que sou infeliz é dizer-me com direito a queixar-me, como se não houvesse mais infelizes sobre a Terra e a supor implícita a afirmação de que sou «escritor». De modo que o melhor é não dizer nada ou sequer pensá-lo. Ou pensar que sou realmente infeliz e deixar de fora do pensamento qualquer outra conversa. Ou admitir que todo o artista é um desgraçado que se cumpre em encantamento nessa desgraça. Ou que se é feliz nos raros instantes em que se levanta por sobre a infelicidade que lhe coube. Mas não insisto porque corro o risco de me sair tudo ao contrário. E porque se não há-de ser simplesmente vaidoso do que se quer fazer, não tendo por isso inveja a ninguém que não queira fazer o mesmo, sentir-se todavia arrasado de sofrimento porque se não foi capaz, como é fácil verificá-lo ao rever-se o que se fez? Todo o artista é infeliz. Dando-lhe as voltas que se quiser, acaba talvez por estar certo

Vergílio Ferreira, Conta-corrente, nova série, vol IV, Bertrand Editora, p.179-180

28/08/11

Albatroz

Frente à janela o velho marinheiro
Sonha com baleias que navegam pela alma
E que o seu olho feroz não arpoou.
O seu coração é na verdade um único
Cemitério marinho. Não o do poema.
O que viaja nessa pequena vaga
Que lhe circula, lentamente, pela face.

Ómar Ortiz,
tradução de Alberto Soares, (surripiado aqui)



17/08/11

In memoriam

Dulce chopo,
Dulce chopo,
Te has puesto
De oro.
Ayer estabas verde,
Un verde loco
De pájaros
Gloriosos.
Hoy estás abatido
Bajo el cielo de agosto
Como yo frente al cielo
De mi espíritu rojo.
La fragancia cautiva
De tu tronco
Vendrá a mi corazón
Piadoso.
¡Rudo abuelo del prado!
Nosotros,
Nos hemos puesto
De oro
.

Frederico Garcia Lorca


22/07/11

Luar

Aqui, nada.
O vento levou as palavras.
Só me deixou as mãos cheias
de luar...

Paulo Assim, Celulose, Lugar da Palavra, p.63


17/07/11

Exercícios de reconhecimento [1]

A paixão de Floria Tosca é uma vertiginosa descida para o abismo, entre a tarde de 17 e a madrugada de 18 de Junho de 1800: uma correria entre o Teatro Argentina e a basílica de Sant'Andrea della Valle, entre o Palazzo Farnese e a villa de Mario Cavaradossi, à entrada da Via Appia; um último esforço para salvar a paixão da sua vida, no Castelo Sant'Angelo; e um salto para o vazio, do torreão de S. Mateus, longe da vista dos anjos de Bernini que adornam a ponte que conduz àquele que foi o primeiro mausoléu de Adriano. É uma tragédia romana, nas cores e na arquitectura. E uma trama de suspeitas, equívocos e traições, urdida pela imaginação de um francês e pelo génio musical de um italiano.

António Mega Ferreira, Roma - Exercícios de reconhecimento, Sextante Editora, p.131



16/07/11

Lá em cima

Quem não achou o Céu - aqui em baixo -
Lá em cima não o há-de encontrar -
Que os Anjos sempre alugam casa ao lado
Da que formos habitar.

Jorge de Sena, 80 poemas de Emily Dickinson, Guimarães, p.187 



25/06/11

Como a alma se faz água

Existes? não existes? imagino
como a alma se faz água
e o coração maravilha
quando na sombra da tarde
me atravessas pela vida.

Alberto Soares, Equilíbrio, Caminho da poesia, p.81


Jorge de Sena

Jorge de Sena foi um escritor, um ensaísta e um poeta português. Grande. Morreu no estrangeiro e o regime celebrou-se com as suas ossadas. Sena era do tempo em que os intelectuais se enojavam com o ambiente irrespirável do país. Agora os intelectuais não só não se enojam como apoiam ambientes irrespiráveis. Não tenho bem a certeza é que sejam intelectuais. Duvido, porém, que, se fosse vivo, Sena apreciasse o fútil exercício. O seu justíssimo orgulho amargo não se daria bem com piedades póstumas. Eduardo Lourenço falou, certeiro, do «regresso do indesejado». Anos a fio, no antigo como no novo regime (...) trataram-no sempre como um intruso, como um estranho ao cânone oficial e ao «amiguismo» circular. Quando olho para aquilo a que apelidam de «literatura portuguesa» - uma categoria pífia onde cabe tudo, desde o romance encomendado a jornalistas da moda, a meninos e meninas dados a tremuras cerebrais lá onde nem existe uma cabeça - percebo melhor por que é que um homem da dimensão de Sena teve de ir embora daqui para ser Jorge de Sena. Porque aqui matam as pessoas em vida para, depois de mortas, as exibirem como troféus nacionais. Sena acompanhou a minha adolescência e a minha juventude. Como ensaísta, como camonista, como poeta, como romancista, como contista. Em suma, como um Homem. A melhor homenagem que se deve fazer a seres raros como Sena é lê-los e deixá-los entregues à luminosa eternidade a que pertencem.

João Gonçalves, Contra a Literatice e Afins, Guerra e Paz, p. 50-51
 

20/06/11

Minha mãe

Minha mãe zangava-se muito. Entrava em casa quando vinha de fora, da quinta ou da sapataria, e a casa cobria-se de culpas, toda gente era incluída.
Não sei que humor devastador a tomava. Ou sei, agora que sinto o mesmo, uma espécie de desabrido desgosto de retomar um reino que se herdou e não o queríamos. Estou a parecer-me com a minha mãe, finalmente encontramo-nos depois de tantos anos de frieza meio arrependida. Eu acusava-a de ser tão adaptada e falar por provérbios que permitem alguma segurança de opinião. Eu fazia os meus provérbios, era sempre irascível na maneira de proibir qualquer adulação. Cuidado em ter amor por mim! O amor parecia-me enfadonho quando oferecido; tinha de ser difícil e não carinhoso e leviano. "Amor de menino é como água em cestinho" - o mundo parecia-me povoado de crianças, dessas que morrem cedo e têm no peito um vazio.

Agustina Bessa-Luís, O livro de Agustina Bessa-Luís, Guerra e Paz,p. 80-81

Lembro-me de ti...

  Lembro-me de ti... Na escuridão profunda da memória, o teu olhar ilumina a estrada percorrida na história da minha vida. E sinto, em mim, ...